OUTROS AMORES E A CULTURA ISLÂMICA

Dimitri Ganzelevitch
20/06/2009 às 13:00
o: Arquivo
A mulher marroquina resiste ao servilismo da cultura islâmica
   Pouco antes de pegar o trem de volta a Rabat, após vários dias sem ter lido a mínima informação sobre os acontecimentos locais, compro na estação ferroviária de Casablanca a revista semanal Telquel, que corresponderia às brasileiras Veja ou Isto É. Ela mostra quanto Marrocos está se abrindo a uma nova filosofia de imprensa. A surpresa que me espera durante a viagem está no meio do semanário.


  Após a publicação da carta de um jovem escritor, Abdellah Taïa, a sua mãe, revelando suas preferências sexuais "divergentes", vem a resposta de outro escritor, Rachid Benzine. Mais velho e muito conceituado no meio intelectual, embora se declare hétero, este dá total apoio ás declarações libertárias do mais jovem. A carta é divulgada com amplo destaque e fotos de ambos. Mais ainda, Rachid foi vasculhar o Alcorão e declara com luxo de detalhes não ter encontrado no livro sagrado nenhuma condenação explícita contra os amores ditos ilícitos.


  Já foi pesquisada a influência da rebelião feminista - sob comando da judia e marxista Betty Friedan pedindo total equiparação com os homens, no princípio dos anos 60 * - sobre o movimento dos primeiros homossexuais inconformados também exigindo o devido respeito. É histórico o levante dos "gays" em NY no Stonewall Inn, em 1969.


  A história parece se repetir hoje em Marrocos, país muçulmano e conservador, onde uma parcela significativa das mulheres já não aceita mais, há vários anos, o servilismo ancestral. Aos que querem saber mais sobre o assunto, aconselho "Minha vida de menina no harém" de Fátima Mernissi que, nascida num harém de Fez, estudou na Sorbonne, trabalhou na Unesco e hoje ensina sociologia na universidade de Rabat.


  Para quem tem certa familiaridade com a sociedade islâmica, esta reviravolta é da maior importância. Não só porque libera finalmente - ou pelo menos tenta - todos aqueles que vivem em permanente angústia frente a uma estrutura legal repressora, mas porque tal atitude ajuda a dita sociedade inteira a evoluir no respeito às diferenças e à livre expressão, tanto do pensamento como do comportamento.


  No mundo islâmico, como em todas as sociedades arcaicas, as aparências sempre escondem outras realidades. Até o casamento, os jovens não têm praticamente nunca a mínima possibilidade de se relacionar com o sexo oposto, tal a quantidade de tabus impostos em nome da religião.

  Os próprios casamentos são de responsabilidade das famílias e, na maioria das vezes, os noivos nunca se viram antes da ceremônia. O resultado é que as práticas homossexuais entre rapazes são corriqueiras e silenciosamente admitidas até a hora de casar. Só a partir desta passagem é que a prática é vista como condenável. Nem por isso, tal hábito, porém, deixa de persistir.


  Inúmeros são os exemplos na literatura tradicional persa, turca e norte-africana desde Al-Jahiz, Ahmad Al-Tifachi ou Muhammad Al-Nawadji até o contemporâneo Tahar ben Jelloun, que admitiram, admitem, fizeram ou fazem a apologia do amor entre homens, sem nunca terem sido condenados pelos aiatolás e imans do momento.


   Pouco após a viagem a Marrocos, fui passar uns dias em Londres, correndo de museu em museu. No British Museum, enfrentei longa fila para apreciar uma excepcional exposição sobre a época de ouro da Pérsia, século XVII, no reinado do sultão Shah´Abbas, equivalente ao Luís XIV da França. Cerâmicas de Ispahan, manuscritos, bronzes, tapetes, jóias e miniaturas, além de imensas projeções mostrando as maravilhas arquitetônicas deste fabuloso país, davam ao visitante o tamanho da antiga e fausta civilização.

   Uma das miniaturas representa o próprio sultão em clara atitude amorosa com um jovem cortesão**. O texto explicativo adjunto confirma a ilustração, acrescentando que o famoso monarca, que teve numerosa descendência, não escondia suas preferências e, quando bem lhe parecia, esquecia os mandamentos do alcorão.


   Enfim, na minha modesta biblioteca, um dos poucos livros raros é um livro manuscrito persa do século XVIII, com belíssima capa ornamentada de flores. As preciosas ilustrações ostentam sem subterfúgio jogos amorosos entre homens, com explicita minúcia e evidente alegria. Ou seja, em outros tempos, a sociedade islâmica conviveu mais harmonicamente com as diferenças, tal como na Grécia e Roma antiga, ao contrário do obscurantismo medieval e do puritanismo do século XIX.


Para terminar, voltemos a Marrocos. Todos os que estiveram em Marrakech e se aventuraram na Praça Djma Elfna, perdendo-se entre encantadores de serpentes, curandeiros, mercadores de ervas e remédios, pães caseiros, espetinhos e frutas secas, devem ter contemplado por longo tempo, mesmo sem entender a língua, os teatros tradicionais, geralmente de caráter cômico, e notado jovens rapazes maquiados e vestidos com trajes femininos rebolando de forma histriônica que divertem o público.
 
É claro que ao sair do trabalho, continuarão a rebolar, mesmo que mais discretamente, sem incomodar a população, pois fazem parte integrante da cultura convencional, esta mesma que rejeita as opções amorosas fora das normas.

Incoerência de muitas sociedades no mundo contemporâneo.


                                  
** É bom lembrar que a pioneira dos movimentos contra os preconceitos foi a negra Rosa Parks que, em 1955 recusou levantar-se no ônibus para dar lugar a um branco. Hoje, até o velho ônibus está num museu!


** Se ligar no Google "British Museum" e clicar "Shah Abbas" poderá assistir a curta entrevista da curadora Sheila Candy destacando esta mesma miniatura.