CAPÍTULO 1 DA NOVELA "UM TÁXI PARA ALBANY"

Marco Gavazza
17/05/2009 às 08:17
Foto: Arquivo
Acompanhe o que aconteceu na noite daquele reveillon entre Florence e George

CAP. 1

JANEIRO, 1940, WEST END, LONDRES


Um taxi para o Albany, por favor. Alguns motoristas de taxi que costumavam atender Florence na esquina da Stoney St., onde ela morava, num anônimo e mal cuidado prédio de apartamentos próximo ao Borough Market,  já não se espantavam mais com a sua maneira pouco usual de indicar para onde ia, referindo-se ao taxi como se fosse ele o próprio percurso.  Os que não a conheciam demoravam um pouco para entender o que ela queria dizer, até porque normalmente estavam prestando mais atenção em suas pernas ou seu rosto. Mas acabavam por deduzir que ela queria ir para o Albany e seguiam em silencio, olhando-a de vez em quando pelo retrovisor e demoradamente depois que ela descia e caminhava para a entrada do prédio.


Naquela tarde de 1 de janeiro de 1940, Florence Dayse não sabia exatamente o que iria encontrar no apartamento 308 do luxuoso Albany, em Picadilly. Na noite do reveillon que encerrara o ano, entre brindes pouco entusiasmados devido à Guerra Mundial que recém começara e deixava a Inglaterra apreensiva, ela recebera de um amigo a informação de que um cavalheiro muito distinto e solitário estava procurando uma pessoa especial, alguém que lhe prestasse serviços sexuais mas que mantivesse uma espécie de compromisso, já que por natureza ele detestava variar de parceiras constantemente. Era um comerciante bem sucedido e pagava bem. Segundo o amigo, Florence Dayse tinha o seu tipo físico preferido e se soubesse negociar, poderia contar com uma boa renda mensal, livre de sobressaltos.


Ela acordara com uma leve ressaca provocada pelo champanhe da véspera, bebido como se estivessem por acabar não só os dias de 1939, mas todos os vinhedos do planeta. O noticiário dava conta de que uma guerra de proporções mundiais estava começando e a Inglaterra se envolvia num grupo de países aliados e dispostos a deter o alucinado avanço de Hitller sobre tudo o que encontrava pela frente. Isto a preocupava um pouco, mas não acrescentava nem milímetro de dor à sua cabeça, se é que as dores físicas possuem qualquer unidade de medição além do tempo que levam impondo sofrimento. Guerra. E aí? A maioria dos homens não estará disponível.  Um prolongado banho na banheira cheia de sais e espumas, acompanhado por um dry martini como só os americanos sabem preparar e cuja receita ela ganhara de um mariner errante por Londres meses antes, resolveram o problema. Preparara-se cuidadosamente, como sempre fazia para primeiros encontros. Sem exageros, sem afetação, sem nada muito provocante. Nunca sabia exatamente que tipo de homem iria encontrar e tinha muito orgulho de sua imagem junto aos clientes. Independente do prazer que podia proporcionar, Florence gostava de que eles se sentissem bem a seu lado, que eventualmente a convidassem para uma estréia de teatro, uma exposição de arte ou para jantar num restaurante da moda, sem qualquer hesitação. Florence nascera numa família de classe média, porém sua mãe havia sido criada por uma família extremamente refinada de Kensington, onde ela e a mãe dela, sua avó, trabalhavam como uma das 4 camareiras que serviam a mansão. A mãe de Florence fora tratada como membro da família, crescendo entre talheres de prata, porcelana de Limóges e o mais autêntico estilo aristocrático de viver. Fora educada em boas escolas e recebeu até um pequeno dote quando anunciou que iria deixar a mansão para casar. Mas depois de dois casamentos fracassados, nada lhe restara senão fortes vestígios de sua boa educação e Florence para criar. Nem mesmo a bebida conseguiu tirar-lhe a elegância, embora lhe tirasse toda a energia e vitalidade.

   

Florence cresceu entre garrafas e panelas vazias, crises de depressão e dificuldades cada vez maiores. Porém, cada vez que pronunciava de forma errada uma palavra, sentava-se de forma pouco elegante ou pegava de forma rudimentar um talher, era severamente repreendida pela mãe, que nestes momentos parecia recuperar toda a sua força e disposição. Com um brilho nos olhos ela ensinava exatamente Florence como se comportar em cada situação. Florence jamais tivera a coragem de dizer-lhe que terminara usando tudo o que aprendeu para melhorar o seu desempenho como amante remunerada de respeitáveis senhores da City e de onde quer que venham, desde que pagassem bem, fossem discretos e a indicassem a algum amigo.


Foi com esta história de vida e um poder ilimitado de sedução que Florence entrou num taxi naquela tarde e pela mais uma vez declinou a esquisita frase. Sua mãe não estava por perto para corrigi-la. Morrera dois anos antes, acreditando que Florence trabalhava num dos teatros da Shafftesbury Av., o que explicava a hora tão tardia em que chegava em casa todas as noites, bem como algumas dormidas fora de casa, além da receita financeira que permitia um final de vida menos sofrido. 


Nunca entendera muito bem exatamente o que Florence poderia fazer num teatro além de talvez assistir uma peça, já que não era atriz ou autora, figurinista ou coisas assim, mas nunca achara necessário perguntar. Após alguma hesitação, o taxi negro seguia agora suavemente pela Long Lane em direção a Picadilly e ao Albany, onde Florence iria encontrar pela primeira vez com George Wesley e com aquilo que o destino reservara para ela como uma intrincada charada cuja resposta certa, cruelmente, jamais lhe seria revelada.


Sou um homem extremamente inibido, tímido mesmo. Quando estou negociando não, falo até demais, exagero na veemência com que defendo meus interesses e pontos de vista e acabo convencendo as pessoas. Mas no trato pessoal sou um desastre. No lado afetivo então, uma tragédia. Hesitei muito em falar com nosso amigo comum sobre você e pedir que marcasse este encontro. Você pode ver que estou nervoso e tremulo. Esta maneira de ser me traz problemas enormes. Você verá que serão necessárias várias visitas suas até que eu consiga relaxar e fazer sexo. Isto se você estiver disposta e tiver paciência para voltar. Nas primeiras vezes a inibição é tanta que não consigo nada. Fico impotente até que consiga quebrar o gelo dos primeiros encontros. Por isso, proponho que hoje apenas conversemos um pouco sobre qualquer assunto.

  

Meia hora depois George respirava descompassadamente e gemia descontrolado de prazer após um orgasmo ansiado, dentro do corpo ardente, sensual e experiente de Florence.  Logo após recebe-la com seu ensaiado discurso, George convidou-a para sentar num largo sofá e ofereceu-lhe uma xícara de chá, que ela gentilmente agradeceu e trocou por uma dose de brandy. Ele serviu-a e sentou-se a seu lado, esperando que ela respondesse alguma coisa à sua corajosa explicação. Florence então começou a falar-lhe sobre a festa de reveillon onde lhe deram seu  nome e endereço, comentando sobre a inutilidade do registro do tempo. Falou da surrealista situação onde dezenas de pessoas ficavam olhando num ponteiro de relógio o momento exato de ficarem felizes. Enquanto falava, discretamente começou a tocar-lhe o joelho esquerdo.


Florence seguiu falando, falando e falando até perceber que o joelho de George parava de tremer e que um sorriso descontraído lhe ornava o rosto. Sua mão subiu suavemente pela perna de George até que esta roçasse de leve o seu sexo. Deixou a mão ali parada e seguiu falando, falando e falando. Florence percebeu então que algo em George se avolumava e latejava, enquanto o sorriso do seu rosto transformava-se numa mistura estranha de expressões revelando surpresa, expectativa, prazer e ansiedade. Ela  lentamente puxou para baixo as suas calças  fez-lhe sexo oral de uma forma que ele jamais supôs ser possível. Agora George jazia o sofá e Florence se recompunha  com toda calma.


Pensei  ouvir  você dizer que nada conseguia no primeiro encontro.


George permaneceu calado, observando a própria respiração que voltava ao normal. Olhava Florence com um ar de espanto e encanto, sensações que às vezes são tão semelhantes quanto estas palavras que as definem. Começava naquela tarde de 1 de janeiro de 1940 uma relação que George  Wesley jamais saberia definir. E isso não é bom. Quando o coração não consegue registrar que sentimentos passam por ele, a alma fica empoeirada, sem brilho ou cor exata. Estamos habituados a saber exatamente o que sentimos, ou então, a acharmos que sabemos ou até a não sentirmos nada. Não conseguimos entretanto conviver com o fato de sentir alguma coisa que não entendemos de forma clara. Como quando as sensações começam a vagar numa zona de sombras, entre o desejo intenso e sempre satisfeito por alguém, a descoberta de prazeres que nunca se supôs um dia conseguir, uma incontida angústia ao esperar por outro, um inegável ciúme quando o outro não está por perto, um contentamento puro em conversar ouvindo suas histórias e seus problemas; tudo isto misturado com uma inexplicável vontade de que o outro vá embora tão logo acabe a jornadas de sexo,  uma absoluta resistência a se apresentar com o outro em lugares públicos, uma impaciência crescente com o carinho e o cuidado, tudo  ao mesmo tempo.


Isto será sempre apenas sexo, só sexo  que nos unirá e não temo  apaixonar-me  e perder minha rica solidão e imaginar amar e ter raiva por saber que ela nunca me amará e irá com muitos para a cama  e sinto que não sei se  gosto disso mas não conseguirei nunca abrir mão de tão milagroso sexo  e me incomoda a superficialidade de assuntos para conversar mas amo isso  e quero conversar e quero sorrir e o que não quero é amar e que não vale a pena amar e não posso viver sem amar e posso viver sem amar e que incomoda não poder viver sem o que aconteceu agora  e que não vale a pena não valer a pena e nem acho que pode ser tudo aquilo ao mesmo tempo o risco de amar ou nada daquilo ou apenas um pouco daquilo ou algo completamente diferente e nunca imaginei que seria assim e como ela é magnificamente bela e se eu não chegar a nenhuma conclusão e se ela não voltar. Meu Deus.


A vida começa a dividir-se entre a angústia de esperar pela chegada e depois pela partida, na esperança eterna de que o outro sempre venha e sempre vá logo embora.


Como podem conviver no mesmo coração sentimentos tão conflitantes, sensações tão opostas?  Simplesmente não podem. Tudo que eles trazem para as almas em que se instalam é a irremediável ansiedade, a dúvida inquietante, o conflito infindo, a dor interminável, seja de estar ou de não estar. A falta eterna e inevitável de respostas nos faz recordar a infinita angústia de não sabermos a razão de viver, para que estamos sobre este planeta azul, porque enfrentamos tantos perigos desde que nascemos e depois morremos apenas, se estamos sós no universo e porque. Existirmos  enfim, a  que será que  se  destina ?


Não ter respostas para nenhuma destas perguntas terríveis leva as pessoas a tecerem hipóteses e teorias, religiões que falam em renascimentos, reencarnações, inferno e paraíso, vidas passadas e futuras, juízo final e outras tolices que servem apenas para aplacar a inquietação da alma, à falta absoluta de respostas. Se a vida em si já é uma incógnita, impossível viver com mais uma: a incógnita dentro da incógnita. Por isso buscamos constantemente respostas para tudo. Tu me amas ? Eu te amo ? Sou feliz ? Pensas o que de mim ? Vais viajar ? Voltas ?  Haverá chuva para garantir a colheita ? Tudo que é relevante precisa de respostas, explicações, certezas, coerência, lógica. E se não as temos, imaginamos uma e acabamos por acreditar nela. Por isso, quando nossa alma se fecha em neblina e sombras, não nos deixando perceber o que se passa na noite dos sentimentos, nos desesperamos.


George Wesley naquela tarde ainda sequer suspeitava, mas não teria jamais em seu coração respostas para o que Florence Dayse Vatumbí Nash passaria a representar em sua vida. E isto o levaria um dia, ao desespero.