VAMOS FALAR DE FLORES VIAJANDO A FRANÇA

Dimitri Ganzelevitch
16/05/2009 às 15:01
Foto: Arquivo
Abadia de Cluny com suas milenares portas
 

Cheguei ao aeroporto Charles De Gaulle na tarde fria de uma sexta-feira, véspera oficial da primavera. Nem por isso a paisagem promete o esperado despertar boticelliano. Camisa grossa, dois pulôveres e blusão não bastam para impedir aquele ventinho viciado que ignora a derrota e me congela até a moela. Árvores nuas, escuras, krasczbergianas. Aliás, uma escultura do Franz humaniza um interminável e metálico corredor. Referência a Arte, última bóia...


Horas depois, a abadia de Cluny me abre suas imensas e milenares portas, entrando assim mais ventos cinzentos, gelados. Felizmente, o quarto monacal tem bom aquecimento. Terei como companheiro o marroquino conservador do sítio romano de Volubilis, sítio que conheço desde criança. Rachid só aparecerá na noite seguinte. Não ronca, o que já é uma benção. A semana de formação intensiva será intensiva mesmo. Começando pontualmente ás 9, termina pelas 22:30, com duas curtas horas para refeições. A qualidade destas refeições, em faculdade pública, mesmo de alto nível, muito vai me surpreender. Só faltam mesmo os vinhos da Borgonha, que tanta competição fazem a Bordeus. Mas como nos concentraríamos sobre os depoimentos dos colegas com Baco na cabeça?


Lá fora o gélido chuvisco continua negando a impaciência da natureza. Vez ou outra um raio de sol, nada tropical, é sinal de esperança. Os africanos são sempre os primeiros a aparecer na sala de conferência e na cantina. Alegres e descontraídos, lembram as dunas do Saara, as águas claras de ilhas a caminho do Oriente. Quando falam, em francês, impressionam pela qualidade do discurso, forma e fundo. Aqui a língua de Victor Hugo reina absoluta, com a benção da Unesco. E é bom que assim seja, pois línguas e dialetos também são patrimônios culturais e recorrer sistematicamente ao americano seria negar esta verdade.


Nos jardinzinhos da pequena cidade de Cluny, flores amarelas começam a cobrir magros arbustos, primeiro sinal dos novos tempos. Um jovem historiador defende o restauro de um castelo vizinho, saído de um conto de fadas, perdido no meio da floresta. O arquiteto canadense fala das dificuldades de manter a homogeneidade patrimonial da ilha de Orleans, no Quebec. Uma ponte e uma estrada central estão descaracterizando o sítio e os habitantes se recusam em entender o perigo. Lembro de outras ilhas, bem aqui na minha frente, pelas quais não existe o mínimo projeto de preservação.

Entretanto, as árvores passaram do marrom ao cinza que em poucos dias se transformará em verde amêndoa, acabando explodindo em milhões de tenras folhas. A terra também corre contra o tempo e se cobre de novos gramados que o vento dobra.


O professor arquiteto belga mostra um documentário sobre outra ilha tombada, a de Saint Louis, no Senegal, vítima da burro-cracia local que resolveu retirar velhos bancos de areia e, mudando as correntezas, acabou com a pesca e o frágil equilíbrio social da área. A representante da Unesco fala de forma simples e clara das condições exigidas para que um sítio seja declarado Patrimônio Mundial. Lá pelo fim da formação, me confessará já ter ouvido falar de meu trabalho na Bahia. Como é gratificante saber que em algum longínquo lugar do planeta, alguém sabe das minhas lutas e simpatiza com elas!...


Na quinta-feira, mudança de programa. Em vez de teoria, vamos vasculhar o sitio arqueológico galo-romano de Bibracte. Após duas horas de confortável ônibus, chegamos ao meio da floresta. Região montanhosa. O frio se fez mais penetrante. O museu, iniciativa de François Mitterand, de linhas contemporâneas, construído na parte baixa do sítio, se insere harmonicamente na paisagem. A subida até as cimas será saudável exercício após tantos dias sentados na sala de trabalho. A vista se estende por imensidões sem que nada a agrida. É que, quando um sítio é tombado, seu entorno também é considerado parte do patrimônio.


Tal qual o lamentável caso, aqui, do Hotel Hilton no Comércio.


Na serra, a primavera ainda não deu o ar de sua graça. De verde, só os musgos dos velhos troncos. O entusiasta diretor explica detalhadamente as etapas das escavações e os métodos aplicados. É evidente a generosa verba investida em Bibracte. Mais surpreendente ainda é saber dos milhares de visitantes que este lugar, tão longe dos eixos turísticos, atrai durante o ano. A refeição chegará ao requinte de uma reconstituição gastronômica dos princípios da era cristã.


Entretanto, os deuses que decidem das mudanças sazonais trabalham sem descanso durante a noite, pois a cada manhã algo mudou na paisagem. Nascem as violetas glicínias, aparecem as primeiras pirâmides de florzinhas brancas nas castanheiras, as macieiras, ameixeiras e cerejeiras, cobertas de vários tons de rosa e de branco, fazem de cada olhar uma festa impressionista.


Na sala de reuniões, as simpatias e afinidades se fizeram mais evidentes. Somos convidados a formar grupos de trabalho de quatro ou cinco participantes. Minha proposta, analisada pela equipe, revela que, antes de tudo, minha casa pode ser considerada ponto de encontro de artistas e intelectuais. E é mesmo. Se as autoridades fazem questão de ignorar o endereço, não falta quem telefone ou contate para conhecer as coleções, o jardim e bater prosa comigo. Rara é a semana que não favoreça encontros culturais.


A passos largos a primavera enfim se instala nos mínimos cantos e recantos. Ao longo da estrada, no cemitério, entre as trilhas da ferrovia, nos canteiros dos estacionamentos, na porta da padaria e do açougue, pequenas ou grandes, flores inundam o olhar com suas cores. Perfumes sensuais. Somos todos jovens, lindos e saudáveis. Todos sorriem e se amam... É primavera, gente!


O conservador do palácio de Valtice, bem perto de Praga, me convida a sua casa, prometo ver o novo centro de acolhimento de Volubilis, iria até a Finlândia, não fosse meu pavor ao frio, preciso conhecer o Togo e o Mali, agora com amizades preciosas - e os africanos têm a hospitalidade como fundamento tradicional -  e se for a Madagascar, velho sonho, a Baby Victória será cicerone excepcional.


Agora, a nova estação começa a subir em direção ao norte da França e em poucos dias terá entrado, vitoriosa, em Paris...