AS BONECAS DE PANO DE WALDETE

Dimitri Ganzelevitch
28/12/2008 às 15:05
Foto: Foto: Divulgação
Fazer boneca de pano é pura arte popular
 

No século XIX, as escravas não podiam oferecer lindas bonecas de porcelana a suas filhas porque estas eram exclusivamente importadas da Inglaterra para as sinhazinhas. Criança é criança e desconhece diferenças sociais. Quantos choros não terão nascido da vontade infantil de possuir e brincar com uma destas preciosas bonecas?...

Assim nasceu uma tradição que, até ha poucos anos, ainda podia ser encontrada na Bahia: a boneca de pano.


Cheguei a conhecer a última artesã, Waldete Cristina. Uma mestra nesta arte difícil.

Esta senhora era dona de invejável saber não somente de cultura popular, mas também das antigas sociedades aristocráticas baianas. Certa vez, convidei-a para almoçar em casa. Felizmente não era daquelas que aceitam convite e não aparecem. Veio, sim, e ainda com as mãos carregadas com pesada travessa de suculenta sobremesa feita à base de coco e ovos. "Esta receita eu herdei de minha avó que fora escrava" afirmou minha amiga, com certo orgulho.


Recém chegado a Salvador, não pude deixar de me emocionar com tão simples declaração. Não é todo dia que você tem sentada na sua frente alguém que lhe lembra tão profundas feridas, sem aparentar ressentimento.

Mas o forte da Waldete era mesmo a técnica das bonecas de pano, com escamas de peixe para as unhas. Ofereceu-me um Exu que, hoje, um pouco cansado, guarda a entrada de minha biblioteca.  

Um excepcional conjunto de obras de Waldete pode ser admirado no Museu da Cidade. Cenas do cotidiano de Castro Alves animam caixas onde estão documentados os interiores burgueses da época. Muito lembram as casas-brinquedo do século XIX.


Por sorte, no princípio deste ano, tive a surpresa de encontrar no charmoso Cafelier, perto do convento do Carmo, duas bonecas de pano com todas as características das bonecas de escravas. Até as formas generosas dos corpos e cinturas finas denotam a estética do fim do século XIX. As duas, de algodão negro, estão despidas, braços abertos, com modesto torso e sapatinhos. Talvez nunca tenham sido usadas por crianças, pois estão em perfeito estado. Uma é de corpo inteiro, a outra só existe até as ancas, lembrando os santos de roca.


Justa vingança do destino, hoje as bonecas de pano confeccionadas por escravas são muito mais raras que as de porcelana e, pela lógica do mercado de antiguidades, deveriam ser muito mais valiosas.

Mas o maior valor não é, com certeza, o valor material, mas o maternal carinho que acompanhou seu nascimento.