MEU NOME É CRISE A FOME NA ÁFRICA

Frei Betto
19/12/2008 às 16:02

Foto: Foto: Reuteres
O número de famintos crônicos no mundo chega a 840 milhões de pessoas
   Há tempos não se falava tanto de mim como agora. Tudo por causa de uma
 crise no sistema financeiro. A África anda, também há tempos, em crise
 crônica - de democracia, de alimentos, de recursos; quem fala disso?
 Existe ameaça de crise do petróleo; governantes e empresários parecem
 em pânico frente à possibilidade de não poder alimentar 800 milhões de
 veículos automotores que rodam sobre a face da Terra.
 
   No último ano, devido ao aumento do preço dos alimentos, o número de
 famintos crônicos subiu de 840 milhões para 950 milhões, segundo a
 FAO; mas quem se preocupa em alimentar miseráveis?
 
   Meu nome deriva do grego krísis, discernir, escolher, distinguir -
 enfim, ter olhos críticos. Trago também familiaridade com o verbo
 acrisolar, purificar. Ao contrário do que supõe o senso comum, não
 sou, em si, negativa. Faço parte da evolução da natureza.
 
    Houve uma crise cósmica quando uma velha estrela, paradoxalmente
 chamada supernova, explodiu há 5 bilhões de anos; seus cacos,
 arremessados pelo espaço, deram origem ao sistema solar. O sol é um
 pedaço de supernova dotado de calor próprio. A Terra e os demais
 planetas, cacos incandescentes que, aos poucos, se resfriaram. Daqui a
 5 bilhões de anos o sol, agonizante, também verá sua obesidade
 dilatada até se esfacelar nos abismos siderais.
 
    Todos nós, leitores, passamos pela crise da puberdade. Doeu ver-nos
 expulsos do reino da fantasia, a infância, para abraçar o da
 realidade! Nem todos, entretanto, fazem essa travessia sem riscos. Há
 adolescentes de tal modo submersos na fantasia que, frente aos
 indícios da idade adulta, que consiste em encarar a realidade,
 preferem se refugiar nas drogas. E há adultos que, desprovidos do
 senso de ridículo, vivem em crise de adolescência...
 
   Resulto da contradição inerente aos seres humanos. Não há quem não
 traga em si o seu oposto. Quantas vezes, no trânsito, o mais amável
 cidadão arremessa o carro sobre a faixa de pedestres; a gentil donzela
 enfia a mão na buzina; o aplicado estudante acelera além da
 conveniência! Não é fácil conciliar o modo de pensar com o modo de
 agir.
 
      Estou muito presente nas relações conjugais desprovidas de valores
 arraigados. Sobretudo quando a nudez de corpos não traduz a de
 espíritos e o não-dito prevalece sobre o dito. Felizmente muitos
 casais conseguem me superar através do diálogo, da terapia, da
 descoberta de que o amor é um exercício cotidiano de doação recíproca.
 O príncipe e a fada encantados habitam o ilusório castelo da
 imaginação.
 
      Agora, assusto o cassino global da especulação financeira.
 Acreditou-se que o capitalismo fosse inabalável, sobretudo em sua
 versão neoliberal religiosamente apoiada em dogmas de fé: o livre
 mercado, a mão invisível, a capacidade de auto-regulação, a
 privatização do patrimônio público etc.
 
    Dezenove anos após fazer estremecer o socialismo europeu, eis-me a
 gerar inquietação ao mercado. A lógica do bem-estar não lida com o
 imprevisto, o fracasso, o inusitado, essas coisas que decorrem de
 minha presença. Os governantes se apressam em tentar acalmar os ânimos
 como a tripulação do Titanic, enquanto a água inundava a quilha,
 ordenou à orquestra prosseguir a música...
 
   Tenho duas faces. Uma, traz às minhas vítimas desespero, medo,
 inquietação. Atinge aquelas pessoas que não acreditavam em minha
 existência ou me encaravam como se eu fosse uma bruxa - figura
 mitológica do passado que já não representa nenhuma ameaça.
 
   Minha outra face, a positiva, é a que a águia conhece aos 40 anos: as
 penas estão velhas, as garras desgastadas, o bico trincado. Então ela
 se isola durante 150 dias e arranca as penas, as garras, e quebra o
 bico. Espera, pacientemente, a renovação. Em seguida, voa saudável
 rumo a mais 30 anos de vida.
 
   Sou presença frequente na experiência da fé. Muitos, ao passar de uma
 fé infantil à adulta, confundem o desmoronar da primeira com a
 inexistência da segunda; tornam-se ateus, indiferentes ou agnósticos.
 Não fazem a passagem do Deus "lá em cima" para o Deus "aqui dentro" do
 coração. Associam fé à culpa e não ao amor.
 
  Acredito que este abalo na especulação financeira trará novos
 paradigmas à humanidade: menos consumismo e mais modéstia no padrão de
 vida; menos competição e mais solidariedade entre pessoas e
 empreendimentos; menos obsessão por dinheiro e mais por qualidade de
 vida.
 
   Todas as vezes que irrompo na história ou na vida das pessoas, trago
 um recado: é hora de começar de novo. Quem puder entender, entenda.