A CADEIRA DO SAPATEIRO DE SEVILHA

Dimitri Ganzelevitch
07/12/2008 às 16:11

Foto: Foto/Div
Sevilha é uma das mais belas cidades da Espanha

 

Teria que mandar um e-mail aos meus amigos Claudine e Jean-Pierre para ter a data exata da viagem a Tanger, atravessando parte da Andaluzia. Mas foi com certeza no meio dos anos 1960, quando já tinha a casa de Albufeira, no Algarve. Casa simples, de pescadores. Mas como era bonita, toda caiada de branco e azul! E que vista sobre a praia! De manhãzinha, podia ver a puxada de rede com a ajuda de bois.


Saímos de carro cedo, atravessando o rio Guadiana de balsa. Ainda não havia ponte entre as fronteiras. As águas estavam repletas de medusas. Tomar banho por aqui deve ser suplício chinês. Em contrapartida, a brisa vinda do mar amenizava o calor de julho. Nas proximidades de Huelva, os 42° de calor seco nos dariam saudade das impossíveis ondas frescas.


Paramos em Sevilha na ida, ou na volta? Também vou ter que perguntar. Mas como esquecer o passeio noturno no bairro de Santa Cruz, ruelas silenciosas, o murmúrio das fontes, uns longínquos acordes de flamenco, o alegre ressonar dos cavalos que levam turistas em leves fiacres?


Foi de manhã, ou foi de tarde, após a longa siesta contornando as horas mais impiedosas? Mais um detalhe perdido no tempo. Vagando pela cidade, Claudine quebrou um salto. Sapateiros não faltavam, na Espanha franquista. Hoje é coisa do passado. Quebrou, lixo.


Este era velho, franzino, curvado, provável reencarnação do criador de Pinocchio*. Mas, como todo andaluz que se respeita, conversador e curioso. Trabalhava num antro minúsculo, rodeado de todo tipo de calçados em estado avançado de aposentadoria, latas de cola, pregos, papelões, sem faltar os dois obrigatórios gatos de qualquer conto de fada.

Entender as perguntas não era tarefa fácil e as respostas menos ainda. É que o sotaque andaluz escamoteia os "jotas" e esquece os "erres". Restam umas impossíveis vogais, que a gente tem que reconstruir, reinventando frases coerentes.


Apesar de tanto rodeio, fui rápido em reparar a cadeira baixinha onde o homem estava sentado a trabalhar. Uma cadeira bem tradicional, atarracada, fundo de palha, estrutura de madeira torneada, pintada de verde com uma sevilhana dançando no medalhão do centro das costas ornamentadas de pequenas flores.


Após a surpresa de meu pedido de compra, não hesitou dois segundos em selar o acordo. Saímos com o salto restaurado, calçado e o velho assento no colo.


A cadeira do sapateiro coube sem problema na mala do carro e hoje uso-a para consultar livros na estante mais baixa de minha biblioteca.



* Computador tem destas coisas! Recusando a palavra "Pinocchio", meu monitor propõe "Pinochet". Não dá para epilogar acerca desta interessante substituição?