A CAMA DE VITOR HUGO

Dimitri Ganzelevitch
23/11/2008 às 10:16

Vitor Hugo, escritor francês, tem uma cama que está no centro histórico de Salvador
   Nunca tive muito dinheiro para loucuras.

  Os móveis da casa, os objetos de minha coleção foram achados em lojas de segunda mão, brechós e ferros velhos. Mais raramente em mercados das pulgas e poucos em sofisticados antiquários.

  As limitações econômicas me levaram a desenvolver um faro especial pelo "achado". Por intuição ou sorte descobri tesouros que outros tinham ignorado.


  Precisando de uma cama para um quarto de hóspede na casa recém-comprada no centro histórico, andei futucando nos lugares mais improváveis de Salvador até entrar, mais uma vez, numa loja da Baixa dos Sapateiros, cujo dono, velho e amável judeu - seu nome por enquanto foge de minha memória - era perigoso vendedor.


  Da loja, hoje somente subsiste no alto da fachada uma estrela de David e umas palavras em hebraico, provavelmente citação do Talmude.

  Por trás da fachada, dá para ver o estacionamento que leva ao Pelourinho. Dizem que o governo nunca chegou a indenizar o bravo comerciante. Deve ter falecido de desgosto, como outros, vítimas de uma restauração tão repressora quanto apressada.


  Desmontada, esquecida contra a parede, uma cama de corpo e meio, lembrando muito vagamente um estilo entre gótico e rústico, velha de uns quinze, no máximo vinte anos, esperava um melhor destino sob boa camada de poeira e mofo, duas especialidades do estabelecimento.

  O preço sendo mais que razoável, levei sem tardar o móvel para a casa do Santo Antônio.


  Prontamente montada, colchão revestido de colorido chitão, meia dúzia de almofadas condizentes, uns quadros nas paredes, livros na estante e o quarto estava digno, pelo menos no meu olhar complacente, do rei de Roma.


  Pouco depois um amigo francês veio admirar as instalações. Quem não gosta de mostrar o resultado da imaginação suprindo magicamente o vazio do bolso?
 
   Entrando no quarto, o visitante exclamou-se "Ah! Mas esta é a cama de Victor Hugo!".
  Risadas.


  Realmente, dentro do contexto, ela tomava aristocráticos ares de antiguidade, que não tinha dois dias antes. O tempo passou e, com ironia, sempre mencionava a humorística observação aos curiosos.


  Até chegar uma jornalista de afamada revista internacional. A moça, nem tão mocinha assim, tomava notas e mais notas, enquanto o fotógrafo documentava cada canto como se do Louvre se tratasse.


  Meses transcorreram. Esqueci a revista, a jornalista e o fotógrafo, até um pesado pacote chegar pelo correio. Era a tal, em vários exemplares. Muita gentileza. Abri o magazine.

  Bela impressão, belo destaque da casa. A cama, figurando em página especial, estava legendada como tendo realmente pertencido ao autor de "Os Miseráveis" e do "Corcunda de Notre-Dame"!


  Desde aquela data memorável, meu discurso de guia-anfitrião enriqueceu-se com tão saborosa anedota, nascida de uma profissional séria, mas tão dramaticamente séria, que perdera totalmente o desconfiômetro e o sentido do humor.


 
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