NEGRO DEUS

ZédeJesusBarrêto
15/11/2008 às 13:20
 Vi Deus.


  Humanizou-se negro, magro, alto, de carapinha encanecida,

barba e bigode ralos e riso branco iluminado.


  Um sereno e elegante setentão,

cidadão urbano comum anônimo metido em calças largas claras,

paletó cinza surrado sobre uma camisa branca de colarinho aberto

e punhos expostos de beiras puídas.


  Pés grandes cadarçados em sapatos batidos

e dedos das mãos compridos e ágeis, enfeitados por dois anéis,

uma espécie de aliança larga em prata  e outro com uma pedra azul

celeste e reluzente.


  Tive a certeza de sua divindade pelo som de seu sopro

no saxofone dourado que descia sinuoso e imponente até as braguilhas,

boca ao tempo ampliando, ecoando delicadeza pura, encantamento.


  Encontrei o negro Deus blues numa noite de outono amena,

neblinada e sem lua,

só,

encostado na parede entre a porta e a janela de uma casa simples e descascada de uma ruela mal iluminada e bela de Nova Orleans.


  Fui atraído pela magia dos seus acordes, louvores à existência.

Parei diante d'Ele, madrugada deserta, quis quedar-me de joelhos,

súdito; Ele percebeu, arregalou-me os olhos,

tirou por uns segundos a palheta dos lábios e riu majestoso

para mim, em êxtase. 


  Daí, cerrou as pálpebras e prosseguiu

bordando em pétalas a trilha de tons, cores e odores celestiais,

uma viagem ao infinito dos tempos, além do Universo.

Alumiado.


  O som do sax de Deus é chama do espírito,

só com a alma é possível ouvi-lo.

Não sei se adormeci ou onde fui parar,

pongado numa nuvem branca tangida pelo sopro divino.

Faz tempo que vi e ouvi Deus, tão perto.


  Desde então, para sentir-me pleno

basta a lembrança daquela noite, aquela melodia que,

a despeito de seus acordes tão nítidos, simples, magníficos ...  

não consigo reproduzi-la. 


  Fecho os olhos, ouço-a. Sinto o cheiro daquela madrugada.

O negro Deus flutua entre a neblina encantado pelos acordes.

A saudade daquele encontro me basta, me redime.


  Nunca soube o nome de Deus. 

Presumo que Ele assume todos os nomes.

Ele é o Verbo.


  Ou tão somente se manifesta assim,

em forma de sons.


  É Música.