O VESTIDO BORDADO

Dimitri Ganzelevitch
18/10/2008 às 18:02
 

Lá estava ele, jogado no chão de um passeio mal varrido da Feria de la Lagunilla.

O que é uma roupa sem corpo senão uma pele á espera de alma?

Pirandello está por perto. Quem dá mais?! Como quem não sabe se vai querer ou não, pergunto o preço com a ponta do sapato enlameado. Alguns pesos. Como música de fundo não podia faltar uma xaropada de Júlio Iglesias num LP parasitado.

Pago, enfio num saco de plástico de supermercado e levo, como ladrão bem sucedido, um tesouro, uma história.


Enfiado num manequim especialmente comprado para o efeito, recebe agora os visitantes no meio da escada.

Que história? Não sei, mas idealizo o nome da antiga proprietária. Mercedes. Fácil é adivinhar o essencial do roteiro.


Era uma mulher de estatura média para pequena.

Idade? Não muito nova, já que, nos tempos de agora, adolescente nenhuma iria passar horas e meses imaginando enfeites e bordando com infinita paciência cada miçanga, cada lentejoula, cada pérola.

Rica também não era. Pela qualidade do tecido, uma seda artificial de amarelo berrante, fecho barato, daqueles que você encontraria num armarinho da Baixa dos Sapateiros. Pelos detalhes, pelo estilo, altura da bainha etc. é provável que tenha sido feito nos anos 1970, talvez até mais recentemente.


É o vestido de uma vez, nada mais na vida. Serei a mais bela da festa. Do baile, da cerimônia, do casamento, não importa. Escolha a palavra certa, o princípio é o mesmo.

Durante noites inteiras, Mercedes ficou debruçada sobre a agulha, até doerem as costas, até sentir um começo de câimbra na mão, até os olhos chorarem de cansaço. Mas o sonho era alto, a esperança dava-lhe força para varrer a madrugada dos fins de semana. Durante o expediente, imaginava novas composições. Voltava correndo para o obscuro apartamento num longínquo subúrbio da capital.


Podemos imaginar a mulher, que julgamos também não ser muito bonita, mas habitada pela esperança que derruba montanhas. Bordando, centímetro por centímetro o mais belo traje de sua existência laboriosa, ingrata, mas que, como todos nós, nunca abdicou de seus sonhos mais loucos.


Vejam como ela avança no meio do salão, da igreja, do palácio, ciente de todos os olhares admirados. Não prestem atenção aos eventuais sorrisos condescendentes de quem sabe o que é elegância.

Ela se sente, ela é a rainha da festa e não faltará quem lhe confirme a ilusão. Que guapa estás! Que belleza, tu vestido! Lo hás hecho tu? Talvez... talvez um exagero de perfume barato, não?


Valsa, Chagall, redemoinha, Chagall, voa, Chagall, na noite estrelada da Praça Garibaldi ao som de cem mariachis...


Bigodes e cabelo engraxados, Jorge Negrete, Pedro Infante e Miguel Mejias por ela cantam e suspiram. Rainha por uma noite. Lágrimas nos olhos.


Mas uma realidade se faz presente, imperativa. O vestido foi vendido num passeio sujo do centro de México, por um punhado de moedas.
 
O trabalho, que deu a esta mulher, tal uma Penélope de suburbana, acabar desta forma, vocês acham justo, acham lógico? Que passou? O noivo não apareceu? Mercedes morreu do coração?


A história terminaria mal, se o destino não tivesse colocado um atento e algo bizarro comprador no meio da decadência. Graças ao poder do olhar, graças ao acaso, estar no lugar certo e no momento certo, a mexicana bordadeira, que nunca virá a saber o fim do sonho sonhado, vê seu longo trabalho enfim reconhecido e recompensado.


O belo vestido de Mercedes conseguiu segurar um pedacinho de felicidade, quase eternidade.