100 ANOS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA AO BRASIL

Maria Aparecida Torneros
18/06/2008 às 13:52
Tudo começou num sorteio. Eu era repórter da revista O Cruzeiro, em início de carreira, tinha 22 anos, cobria economia, passava diariamente na assessoria do Ministério da Fazenda, no Rio de Janeiro. O Banco do Brasil ia inaugura sua primeira agência em Tóquio. Os setoristas, como éramos chamados, pediram ao Ministro da Fazenda, na época Delfim Neto, que sorteasse uma passagem de ida e volta para um de nós acompanhar de perto o acontecimento.

Eu era a "foca" da turma. Só aprendia com os decanos Alvimar Brito, Maria Augusta, do Jornal do Commercio, Sérgio(do Globo), Jonhy ( o baiano do JB), numa convivência familiar, tratada com o carinho dos que se propunham a me passar informações preciosas, como o teor das benditas alíquotas, e aqueles nomes complicados do "economês", numa febre de milagre brasileiro, ávido de crescimento. Pois o sorteio, com mão no saco, coube ao meu nomezinho, e lá fui eu, incentivada pelo meu chefinho Ubiratan de Lemos, com aval de diárias oferecidas pela revista, além de encomenda de uma série de reportagens que aqui foram publicadas com o título "Um país made in Japan".

A menina do subúrbio carioca, que nem sequer tinha sonhado em estrear seu primeiro vôo de avião, planando rumo ao Sol Nascente, num percurso recém-inaugurado da Varig, nossa companhia maior, durante longas 26 horas, com escalas em Lima, Los Angeles e Ancorage ( no Alaska). Aventura, inesquecível ida e imperdíveis histórias.

O Japão, terra distante e cheia de mistérios me esperava, ansiosa que estava por descobrir segredos e conviver com um povo tão diferente do nosso, ainda sem muita aculturação ocidental, mas surpreendendo o mundo com a sua economia crescente e seu ressurgimento depois de arrazado pela Segunda Grande Guerra.

O que vi e senti, o que escrevi, naqueles meus tempos de vida passada por lá, certamente mudou meu olhar diante da humanidade e me fez crescer interiormente. Havia uma gente que fui observando como dedicadíssima ao seu trabalho e consciente do seu papel na história do ser humano, com muito a me ensinar, com outro tanto a me emocionar, e mais o imenso dom de me tornar apaixonada por sua capacidade de organização.

Na festa de inauguração do Banco do Brasil, compareci vestida num quimono de gala,que tenho até hoje, amarelo, bordado de dourado, com sandálias douradas, e meias especiais típicas, com separação de dedos. Foi minha sesibilizada e louca homenagem. Hoje lembro das caras de espanto dos presentes, tal a minha ousadia de menina brasileira a trajar suas roupas, exibir-me integrada ao seu estilo milenar, ao mesmo tempo em que sorriam e me pediam para tira fotos ao seu lado, foi uma noite incrível. Eu, saltitante, nem ligando para o quanto poderia parecer inusitado e inesperável adentrar por aquela cultura, ainda tão rígida, e ouvir, depois, do Tetsuya, o quanto aquilo era inesperável numa cerimônia como aquela, uma ocidental fantasiada de japonesa. Mas, acho que consegui demonstrar minha felicidade de estar ali, naquele dia.

Lá, aprendi a comer sua comida e gostar do seu gosto exótico. Lá, convivi com gente do povo, andei no metrô, visitei cidades que já corriam atrás do futuro, e ainda pude partilhar da sua fé, nos domingos em que me misturava ao pessoal que frequentava o templo de Azakuzá, em Tóquio, praticantes do budismo shintoista.

Para uma garota carioca, no auge da juventude, tive a assessoria fotográfica de um rapaz chamado Tetsuya Abe, de quem me tornei amiga, e com ele e sua jovem esposa, pude visitar clubes, ir a restaurantes populares, assistir shows locais, passar horas agradáveis em parques e ainda, me descobrir como amante da canção nativa e dos ritos familiares tradicionais. A primeira vez em que adentrei sua casa, sem tirar as botas, vi nos seus olhinhos puxados a perplexidade. Voltei atrás correndo para me descalçar, e o sorriso de ambos me revelou o apreço que cultivam pelo lar limpo das impurezas da rua, para um aconchego extremamente saudável, com direito a uma paz intraduzível para um ocidental.

Quanto às reportagens, estas me propuseram de tudo um pouco. Fui ao hospital militar tentar entrevistar o soldado resgatado de um exílio de décadas, fiel ao Imperador Hiroíto, que ficara na ilha de Guam, com vergonha de não ter se suicidado, ao perder a guerra. Só consegui conversar com seus médicos, e, mesmo assim, produzi um excelente material, com fotos que estes me forneceram.

O cantor Jorge Benjor ( ainda usando Jorge Ben) chegou para sua primeira apresentação por lá. Foi na boate Copacabana, onde eu o assisti como trio Mossoró, e fiz amizade com os quatro, suficiente para irmos juntos em dias subsequentes, ao Palácio do Imperador, para visitar seus incríveis jardins, ver o séquito do Imperador passar e abaixar nossas cabeças, como todo o povo, que não podia olhar diretamente o ser sagrado, aquele a quem se reverenciava como um Deus vivo.

Os brasileiros que lá foram prestigiar a inauguração do Banco do Brasil, acompanhando as autoridades, tiveram oportunidade de participar, como eu, de um jantar baiano típico, servido no Okura Hotel, oferecido pelo Ministro Delfin, com tudinho importado, até as baianas que enfeitaram o evento.

Um corre-corre em Tóquio. Entrevistas coletivas, investimentos anunciados, acordos assinados, promessas de intercâmbios, trocas comerciais, matérias primas brasileiras a serem cambiadas por eletrônicos japoneses. As máquinas fotográficas fabricadas por eles eram a sensação do nosso grupo tupiniquim. Todos queriam trazer umazinha, Jorge Bem comprou uma tele objetiva, ficou parecendo um menino com brinquedo novo. Eu, trouxe para o Brasil e expus aos colegas da redação um gravador último tipo, cuja função novidadeira era desligar-se automaticamente, assim que acabava a rolagem da fita. Hoje, isso pode parecer "dinossáurico", mas no dia em que mostrei à turma do O Cruzeiro, foi uma festa...todos em volta do aparelhinho esperando pra ver a teclinha amestrada, finalizando sozinha a emissão da fita cassete, coisa que o avanço dos tempos, tornou, evidentemente, peça de museu.

Mas, a entrevista que consegui com uma autêntica gueixa de 54 anos, fez sucesso por aqui, e ela foi fundamental na minha vida, tal a profundidade dos conselhos que me passou, via tradução atenta do Tetsuya, que me dizia em inglês o que ela lhe contava em japonês.

Fiquei mais tempo do que as semanas de festa do evento. Fui absorvendo uma experiência de vida suficiente para embalar meus 30 anos subsequentes de vida profissional, atenta a detalhes que aquele povo me ensinou a observar e perceber. Um dia, estive numa escola infantil, e impressionei-me com a aula de cheiro das flores. No jardim, os gurizinhos de vendas nos olhos, identificando os odores da natureza, sensibilizados com o olfato e com a natureza, coisa que naturalmente lhes serviria para farejar os bons fluidos do seu futuro.

Ao avistar o monte FugiYama, pela última vez, na tardinha em que me dirigi ao aeroporto, para voltar ao Brasil, me vieram as lágrimas aos olhos, sabia que deixava pra trás um dos períodos mais importantes da minha vida, e por aqui, consevei o hábito de admirar cada vez mais aquela gente, através da sua colônia, sua cultura e sua integração em nosso país.

Tenho ido ultimamente à festa das cerejeiras, na colônia localizada em Campos do Jordão, e ali reencontro a sensação de amor à vida que tive quando andei por lá. O pós-guerra que me entranhou naquela época era o resgate do seu lado mais positivo. Não havia rancor suficiente para empanar o brilho da reconstrução. Japonês reconstrói todos os dias seu próprio passado, esse povo é de uma garra extrema, dedicação detalhista ao cultuar saúde, bons hábitos, saudáveis momentos para a degustação do chá, para a contemplação da natureza e para o seu maior vício: o trabalho.

Viva os 100 anos de sua chegada ao Brasil!

Salve, em mim, o prêmio de ter sido sorteada para estar lá, há 36 anos atrás!
Essa viagem de trabalho ainda hoje é a melhor referência que tenho da oportunidade profissional que se transformou em lição de vida. Palavrinhas na sua língua ainda repito internamente, agradecendo de mãos unidas e abaixando a cabeça diante da divindade que é a natureza repleta esperança de vida.