Não sei quantas vezes, como repórter, estive com Irmã Dulce, Santa Irmã Dulce. Duas bem especiais, marcantes. Em 1979, quando acompanhei a visita da Madre Tereza de Calcutá, depois de rodar pelas comunidades de Alagados. Duas mulheres iluminadas, que emanavam uma energia santificante.
O encontro mais tocante com a freirinha ‘Mãe dos Pobres da Bahia’ foi anos depois, ela já bem fragilizada, sentada numa cadeira, em uma sala do seu Hospital, em Roma. Nem lembro mais o assunto da reportagem, pouco importa. O que me tocou para sempre foi a firmeza, a fé, a simplicidade, a bondade e a grandeza daquela criatura tão pequenina.
Irmã Dulce era miúda e com o passar e sofrer dos anos seu corpo foi murchando, encolhendo cada vez mais. Parecia um mosquito, mas seus olhos brilhavam, espertos. Era como o galho fino ressecado, quebradiço de uma avenca. Mas resistia. Sabia que a gente pobre precisava dela, e não se abatia. Queria viver.
Sua voz era um fio. Respirava com dificuldade, muitas vezes com a ajuda de aparelhos, em função dos pulmões seriamente danificados por tuberculoses apanhadas no contato, corpo a corpo, com doentes de todas as idades que apanhava nas ruas no silêncio das madrugadas frias. Dava-lhes abrigo, cuidava de cada um com ternura.
No hospital, costumava ir de cama em cama a conversar, noite adentro, de manhã cedinho, para saber como estavam, do que precisavam, às vezes só ou ao lado de médicos e enfermeiras. Cobrava, cuidava. Mesmo com os passos já trêmulos, as mãos e rosto em pele e osso, aquele hábito (vestimenta de freira) único, surrado, sandálias rasteiras...
Cochilava sentada, não mais se deitava. Alimentava-se com meio copo de leite, água e uma banda de maçã por dia. “Sobrevivo das graças dos céus”, me disse. Verdade. A lua divina a mantinha acesa. Só.
Nada possuía ou guardava para si, nada... dinheiro, roupa, calçados, comida... tudo doava, era tudo para sua gente, seus filhos, os mais pobres, os doentes, os sem família, os deserdados de tudo, os mais miseráveis dos humanos. Essa era a sua gente, a quem dedicou a vida desde a adolescência, pra quem pedia, por quem orava.
Sim, não tinha vergonha de pedir em nome de Deus para os que mais precisavam. Passava a cuia de esmoler, tirando dos ricos, dos poderosos, dos mais abastados... ía até eles, fosse o governador, o rei, o artista, o jogador famoso ou o presidente. As Obras Sociais de Irmã Dulce, hoje patrimônio da Bahia, são fruto de sua tenacidade. Tudo começou num galinheiro, imaginem.
Presenciei um telefonema do General Presidente João Baptista Figueiredo, último dos militares da chamada ditadura, pra ela, a pedido dela. E ví o duro homem da cavalaria, de feições carrancudas, enternecer o rosto, os gestos, a voz, como se tivesse falando com a própria mãe. Quase vi lágrimas em seus olhos frios e pesados de milico que foi chefe do temível SNI – Serviço Nacional de Informações.
Quando precisava, era assim. Ela telefonava, implorava e conseguia, e fazia, construía, obrava o bem. Por puro, devotado e desinteressado amor aos desesperançados de tudo. Como negar um pedido de Irmã Dulce? Era uma vocação de Deus. Santidade.
Irmã Dulce era um fiapo de gente. Do tamanho do nada, infinito. Exalava a Graça do divino, que nela habitou.
Foi isso que me ficou dela, a Irmã Dulce. Sem ranços religiosos. Falo do Ser Humano.
Quando me despedi, naquele dia, tive vontade de abraçá-la, de lhe fazer um dengo, um carinho de filho, mas me contive, tão insignificante me senti diante daquele ser celestial. Apenas tomei com cuidado sua mão fria e beijei, com ternura. Os olhos marejando.
Beijei a mão de uma santa. Santa Irmã Dulce, a Mãe dos Pobres da Bahia. Sua benção!