No final dos anos 80 do século passado (1980 e tantos) ainda predominavam nas cidades de pequeno porte os delegados sem formação jurídica, os chamados “delegados calça curta”. E um desses delegados atuava na cidade de Itapé, no sul da Bahia. Diligente, nada escapava que não fosse transformado em inquérito, desde um pequeno bate-boca sem chegar às vias de fato, até a ocorrência de um homicídio.
Até para manter a fama de mau com a simples finalidade de manter a ordem a qualquer custo, o delegado fazia valer a sua nomeação para o cargo de autoridade policial sempre cuidando do cumprimento da lei. Não importava o crime ou contravenção penal, o transgressor era obrigado a se explicar na delegacia, em flagrante, ou prestar depoimento para o competente ser instaurado.
Com isso, o promotor de justiça que atuava numa das Varas do Crime da Comarca de Itabuna (que abrangia Itapé) tinham um trabalho redobrado para analisar esses inquéritos e verificar as possibilidades de transformá-los em processo, oferecendo denúncia. E não era fácil, tendo em vista que, por mais que o escrivão e delegado se esforçassem, o trabalho não era considerado um “primor jurídico”, mas nada ficava sem a devida apreciação do Ministério Público.
Um desses inquéritos chamou a atenção do promotor público, ex-militante da advocacia, professor de Direito Penal e Processo Penal, tribuno dos mais eloquentes, daqueles que empolgam tanto a plateia como os jurados, convencendo-os da imputação do crime. E no inquérito que recebeu, por mais que o nosso promotor se esforçasse, não conseguia acreditar no que estava lendo.
E não foi por falta da devida atenção, pois assim que o inquérito lhe chegou às mãos, o promotor examinou com toda a atenção, para tentar se convencer sobre as imputações feitas pelo escrivão, claro que obedecendo às ordens do delegado. Por mais que apurasse sua atenção, não conseguia vislumbrar a tipificação penal ali descrita e a capacidade da ré, nominada Florisbela.
Zeloso com seu trabalho recorreu às emendas constitucionais votadas pelo Congresso Nacional, mais nada se encaixava, pior ainda, os congressistas não tinham legislado sobre Direito Penal, seja ele substantivo ou adjetivo. E o professor lia e relia o inquérito até que resolveu chamar um colega para passar o inquérito a limpo: ele simplesmente não acreditava no que estava escrito.
Afinal, todo esse esforço intelectual não teria sentido, pois uma simples análise perfunctória demonstraria ter sido desnecessária a utilização de tanto palavreado. Conforme se verificava no inquérito, ao comparecer para cumprir seu ofício no curral da fazenda onde trabalhava, o vaqueiro foi surpreendido por uma chifrada da vaca Florisbela, desequilibrando-se. Ao cair, bateu a cabeça numa pedra e foi a óbito.
Pra começo de conversa, apesar de ser conhecida por Florisbela, o que pode ter levado o delegado a erro, uma vaca é inimputável (quando não há a possibilidade de se estabelecer o nexo entre a ação e seu agente, pois só o homem possui a capacidade para delinquir); não tem capacidade penal (que ocorre nos casos em que não há qualidade de pessoa humana viva e quando a lei penal não se aplique a determinada classe de pessoas, imagine a bovinos).
Também observou o objeto do delito (aquilo contra que se dirige a conduta humana que o constitui; para que seja determinado, é necessário que se verifique o que o comportamento humano visa; o objeto jurídico do crime e o bem ou interesse que a norma penal tutela). No máximo, o delegado poderia ter cumprido o seu mister em registrar a ocorrência para evidenciar a responsabilidade civil do proprietário de Florisbela.
Apos se dar conta da peça inócua que tinha em mãos, o zeloso promotor público pediu o arquivamento do inquérito, pelo simples motivo de que a vaca Florisbela não poderia ser sujeitada a aos rigores da lei. Sem dúvida alguma, foi a chifrada da Florisbela que ocasionou a queda do desavisado vaqueiro, acostumado à lida diária de tirar o leite da vaca pela manhã.
Naquele dia, não se sabe ao certo, quais os verdadeiros motivos da possível zanga da vaca Florisbela com seu vaqueiro, que a tratava com o devido cuidado e respeito ao bezerro, para que conseguisse tirar mais leite. A fatalidade matou o vaqueiro, e pelo que consta, a vaca não premeditou o crime, pois não tem juízo para agir como os humanos violadores da lei.
Inquérito, arquivado, extinto, o promotor não conseguia acreditar a razão que teria o delegado em enquadrar uma simples vaca aos rigores da lei, submetendo-a ao juri popular, sem qualquer precedente na história da humanidade. Pelo visto, nunca neste país um delegado “calça curta” causou tanto problema para o Ministério Público e a Justiça, sem sofrer qualquer penalidade.