Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA “A BAHIA JÁ FOI ASSIM”, DE HILDEGARDES VIANNA

Livro publicado em 1973 e que retrata costumes de Salvador até 1940, uma preciosidade da literatura baiana
07/03/2025 às 10:46

   Vamos prosseguir neste final de semana com crítica literária de autora nacional de acordo com nossa proposta de ir intercalando textos de estrangeiros e brasileiros. E, ademais, sem se ater somente a ”best-seller” ou livros que sejam os mais vendidos apontados pelos veículos de comunicações que se dedicam a esse tema. 

   A lista atualizada do NYT, por exemplo, é sempre uma tentação e no Brasil – Globo e Folha – são os melhores, ainda que haja outros indicadores.

   Comentamos então o livro de Hildegardes Vianna intitulado “A Bahia já foi assim” (Editora Itapuã, 1973, 227 páginas, crônicas de costumes, colaboração do Departamento de Cultura da SMEC, Prefeitura de Salvador, administração Clériston Andrade, prefácio de Thales de Azevedo, à venda em Estante Virtual e Sebo do Canela, SSA, R$30,00) contendo 61 textos de uma Bahia “até mais ou menos 1940”, basicamente sobre a cidade do Salvador.

   A autora, portanto, faz essa advertência aos leitores que irão ler textos de uma Bahia (entenda-se a Cidade da Bahia, Salvador) do passado com costumes que já foram sepultados, porém, alguns deles (observação nossa) ainda persistem com modificações e usos de novas tecnologias. 

   Quando ela fala, por exemplo, dos “Mata-mosquitos” os caçadores de muriçocas “com seus uniformes quase sempre gastos, bonezinhos, lanternas nas mãos, usando brim Tororó e portando uma escada na mão e um balde na outra”, na atualidade vemos servidores da Prefeitura que se assemelham e “caçam” focos de mosquitos “Aedes aegyti” para conter a dengue; e outros tantos que usam carros fumacê para o mesmo fim e também matar ou amedrontar as muriçocas que ainda são muitas em vários bairros.

   Portanto, no livro da folclorista e historiadora Hildegardes, herdeira dessa arte que já era praticada por seu pai Antônio Vianna, muitos exemplos dessa natureza serão encontrados e os leitores, mesmo até sem querer, vão fazer essa analogia até porque, como diz o jornalista Tasso Franco em “A Cadeira e o Algoritmo” (Editora Amazon) as novas tecnologias convivem com as velhas, ainda que não de forma plena. 

  Noutro exemplo, os mascates descritos pela autora, até mesmo os chamados “pulga-prenha” – que usava uma corda passada no pescoço e equilibrava na barriga uma espécie de prateleira contendo miudezas – ainda existem e muitos na Av. Sete e nas áreas do comércio popular de Salvador embora não vendam mais banhas de cheiro e brilhantinas e sim outros produtos e o nome não é mais mascate e sim ambulante ou camelô.

O que Hildegardes descreve são os costumes daquele tempo (até mais ou menos 1940) e o livro é uma doçura, um bálsamo, e eu que tive a oportunidade de conhece-la ainda como colaboradora de A Tarde, nos anos 1970, lembro bem como era popular e bem aceita suas crônicas de costumes neste jornal.

Como bem destacou Thales de Azevedo no prefácio intitulado “Uma costumbrista literária”: “O folclore é, sem dúvida alguma, a literatura de costumes que mais abundante e rapidamente se acresce em nosso país, constituindo um acervo para o memorialista, o historiador das tradições, o sociólogo, o antropólogo e o psicólogo sociais. E, por certo, para a literatura propriamente dita, isto é, para os cancioneiros, as lendas, o anedotário, enfim para todos os gêneros que captam o gênio criador da alma popular”.

 Texto escrito em 1969, Thales destaca que “os trabalhos da professora Hildegardes, que é mestra porque ensina na Universidade (UFBA) e porque é uma autoridade em seu campo, dispersam-se por muitas dezenas, quiçá centenas de artigos que, há quinze anos, publica na imprensa diária desta capital () Destaco, como exemplo disso, a recente crônica “A Mulher do Mingau” (A Tarde, 16/IX/69) quando o folclore deixa de ser simploriamente tradição e curiosidade para assumir o seu significado próprio de fixação e inteligência dos modos de seres humanos em qualquer época e lugar, mesmo quando não sejam tratados com o aparato teórico e terminológico das ciências da cultura”.

  Thales de Azevedo cutuca no âmago da questão e o livro de Hildelgardes deve ser lido (na medida do possível) com essa ótica de entender e apreciar a memória da cidade e de sua gente e não como uma simples peça de costumes populares que não têm valor ou como se diz no popular: “Ah! são coisas do povo que já perderam o sentido”. Pelo contrário, têm todo o prumo, contêm saberes e são esses saberes que compõem a história de um povo.

   E Hildegardes em seus textos mostra os hábitos da população, a arquitetura, a moradia (a sala aberta, o quarto da sala, a sala de jantar, a copa, da cozinha e do seu conceito) e esses ambientes aos olhos de hoje sofreram uma profunda mudança não só em função das novas tecnologias e dos materiais, mas também nas concepções dos espaços, na morfologia e assim por diante. 

   E, nem é preciso dizer porque os leitores percebem a olhos nus que a cidade se verticalizou não só nas áreas das classes média e média alta, mas também nos bairros populares com os puxadinhos e as casas que se transformaram em prédios de 3 ou mais andares que abrigam integrantes (em muitos casos) de uma mesma família, a partir do patriarca com avós, pais, mães, filhos e netos e até bisnetos. E os costumes também se modificaram e se ainda existe a “porta aberta” – comum até os anos 1940; hoje, ela ainda existe, porém, com uma outra porta gradeada em ferro que garante a segurança da família.

   Mas há costumes que, de fato, desapareceram completamente da cidade do Salvador, como os velórios praticados nas casas das famílias, o café do defunto servido durante toda a noite com bolos e brioches, o luto fechado de preto corpo inteiro por ao menos 1 ou 2 anos, os pródomos da morte, os especialistas em vestir defuntos dando-lhe banho e escovando-o, enfim, hábitos (sem trocadilho) que foram sepultados para sempre e já marcaram época. 

  Assim como não há mais cantadores de modinhas e mulheres janeleiras que ralavam os cotovelos nas janelas de suas casas em busca de um amor passante, nem há mais o burro paneleiro e os serenos para apreciar bailes e saraus com pianos, os carroceiros, a botica velha e outros temas que a autora produz.

    Fossemos atualizar esses dados e costumes muitas coisas sofreram transformações e observem que, no Carnaval 2025, um camarote de Ondina criou uma varanda carnavalesca para as pessoas que não podem pagar o preço do ingresso deste camarote (e de outros) o que representa, se comparado com os serenos das valsas e pianos, com um sereno moderno porque o hábito é o mesmo: o pobre usufruir da festa do rico sem nada pagar. 

    E, se não há mais o burro paneleiro em alguns bairros de Salvador ainda se encontram ambulantes empurrando enormes carros com pneus e plataformas onde são acondicionados panelas, bacias e outros vendidos de porta em porta, no grito.

   Vê, pois, como o livro de Hildegardes tem sentido de ser lido e apreciado. É até inspirador.