Esportes
Zé de Jesus Barrêto
27/12/2025 às  12:42

TRÊS ANOS SEM PELÉ, O REI DO FUTEBOL

Pelé foi o maior de todos no mundo da bola


  

Édson Arantes do Nascimento, o menino Dico, nasceu em 24 de outubro de 1950, na pequena e pacata cidade de Três Corações, interior de Minas Gerais. Filho de Dondinho, um jogador de futebol, atacante, artilheiro, ótimo cabeceador (Pelé contava que viu o pai fazer 5 gols de cabeça num só jogo), e de Dona Celeste, matriarca, religiosa/católica, rigorosa na educação dos filhos. Uma família de pretos, mulatos,
humildes, conservadores e decentes, respeitados na comunidade. Dico era bem miúdoquando a família mudou-se para Bauru, interior paulista, por conta da vida de boleiro de Dondinho.

  Foi lá, em Bauru, que surgiu Pelé, ainda guri, canelas secas, fazendo diabruras com a bola, a ponto de jogar entre os adultos e fazer a diferença. Um apelido que nem ele sobe explicar direito a origem, não gostava no início, depois acostumou-se... virou uma ‘entidade’, uma marca, universal, selo de alta qualidade. Já era Pelé, quando, aos 15 anos, foi levado por Waldemar de Brito, ex-jogador e técnico, para o Santos – de Pepe, Zito, Pagão, Jair da Rosa Pinto, Del Vecchio, Formiga... -, um timaço. Era fã de Zizinho, o
Mestre Ziza, um dos maiores meias da história, de quem, confessou, copiou jogadas, e em quem buscou inspiração para aprimorar seu jeito diferenciado de jogar bola.
                                                                            *
    Foi consagrado REI na Suécia, Campeão do Mundo em 1958, ao lado de Mané Garrincha e Didi, cumprindo a promessa feita ao pai Dondinho, que chorava ao pé do rádio, em 1950, após o ‘Maracanazo’, a perda do título, em casa, para o Uruguai de Giggia, Schiafino e Obdúlio Varela (1 x 2, de virada). Naquele dia, enxugando as lágrimas de Dondinho, o menino de apenas 10 anos prometia: “Pai, não chora, eu vou
lhe dar um título de Campeão do Mundo. Deu três, 58, 62 no Chile e 1970 no México. Mas quem primeiro o chamou de REI, antes mesmo da Copa do Mundo da Suécia, foi o jornalista, cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues, um amante do futebol, extasiado no Maracanã diante daquele menino de 17 anos, ainda meio desconhecido, que fazia diabruras em campo, como nunca antes vistas.
*
Segue, na íntegra, a crônica de Nelson Rodrigues publicada em Manchete Esportiva, edição de 8/3/1958. Refere-se ao jogo Santos 5 x 3 América, travado no Maracanã, Rio, pelo torneio Rio-São Paulo, em 25/2/1958. Foi a primeira crônica de Nelson Rodrigues sobre Pelé, e a primeira em que o jogador foi chamado de ‘Rei”. Pérola! Apreciemos.

   “Depois do jogo América x Santos seria um crime não fazer de Pelé meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais.

Pois bem, verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir REI, da cabeça aos pés.

Quando ele apanha a bola, dribla um adversário, é como quem enxota, quem scorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias.
Já lhe perguntaram: ‘Quem é o maior meia do mundo?’ Ele respondeu com a ênfase das certezas eternas: “Eu”. Insistiram: ‘Qual é o maior ponta do mundo?’ E Pelé: “Eu”. ‘E o maior centroavante?’ Novamente: “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: ‘Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!’. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebeu o couro no meio do campo.

Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra, sem passar a ninguém e sem a ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou o
momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete.

Na Suécia, ele não temerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos, aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, em 1954, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós”.
*
Profético! Assim foi, e lá, invictos, ganhamos pela primeira vez o título de Campeões do Mundo com um futebol de outro mundo. Depois de Pelé e Garrincha o futebol transfigurou-se, era outro jogo. Arte, poesia. E o menino de 17 anos foi aclamado e coroado Rei. Foram três títulos conquistados na ‘era Pelé’.

Dos 1 283 gols contabilizados e registrados na carreira profissional do Rei Pelé, ele destacava um, especial, feito no jogo final (5 x 2) da Copa, contra a Suécia, os donos da casa.

“Marquei meu gol mais bonito na final da Copa de 1958. Zagallo cruzou da esquerda. No meio da área, matei no peito e deixei a bola quicar na minha frente. Quando o zagueiro chegou firme para me desarmar, dei-lhe um lençol. Ele até tentou barrar meu movimento com a perna direita e o braço mas consegui me desvencilhar e completar a jogada, chutando sem deixar a bola tocar no chão. Golaço! Naquele tempo não era comum executar um chapéu, ainda mais para um garoto de 17 anos e numa final de Copa do Mundo. Foi o lançamento mundial da jogada”.
*
Tostão, o extraordinário craque mineiro, que jogou contra Pelé (pelo super Cruzeiro de Piazza, Dirceu Lopes, Ze Carlos, Natal, Raul, Evaldo...) e ao lado do Rei na Seleção Brasileira (foram tricampeões do mundo em 1970, no México), cronista de mão cheia depois de pendurar as chuteiras, escreveu numa crônica de agosto de 2015, sobre as comparações que costumam fazer de Pelé com outros grandes jogadores, décadas a fio:

“Faltam nos outros aquela transformação emocional, a possessão que tinha Pelé, sobretudo nos grandes jogos e nas maiores dificuldades. Pelé parecia um animal acuado, tenso, quando não dava pra fazer o que gostava e queria. Tentava, buscava outras soluções como jogar de centroavante, o que fazia com enorme eficiência. Dizem que a perfeição não existe. Seria Pelé, o maior de todos os tempos, uma exceção?

Quando me tornei comentarista, crítico, procurei em minhas lembranças uma deficiência em Pelé. Não encontrei, apesar de ele ter sido melhor em algumas coisas que em outras. Pelé foi o melhor atacante e o melhor jogador da história. Muitos anos atrás, assistia a um show de João Gilberto, quando ele interrompeu e disse que o som não estava bom. Houve um silêncio, até que alguém, na plateia, perguntou: ‘João, você acredita na perfeição?’ Ele respondeu: ‘Não, mas a imperfeição me incomoda’.
João e Pelé, gênios, perfeccionistas.
*

Resgato, entre a papelada velha guardada, uma coluna do jornalista e cronista esportivo Oldemário Touguinhó, na edição de 29/07/1997, do Jornal do Brasil. 

Assim: “Pelé sem adversário
Vamos entrar no novo século e Pelé continuará sendo o Rei do Futebol. Por isso, não tem sentido fazerem comparações sempre que aparece um novo craque. O último a entrar nessa foi o Ronaldinho. Mas como comparar um com o outro? Agora mesmo, com 20 anos, Ronaldinho diz que gostaria de ficar fora da seleção
porque está sem treinar duas semanas. Falou o mesmo no clube. Quando Pelé faria uma declaração dessa? Nunca.

Em 1963, com 22 anos, o rei estava durante 30 dias em Bauru, na casa dos pais, recuperando-se de uma contusão no adutor. Domingo pela manhã, chega à cidade o time do Santos que iria enfrentar o Noroeste pelo campeonato paulista. Pelé foi receber a delegação. O técnico Lula o chama a um canto e avisa: “Estou sem Dorval, Coutinho e Pepe, preciso de você”. O Rei ponderou que estava sem treinar, mas já
não sentia dores na perna. Foi pra casa, comeu frango feito pela vovó Ambrosina, dormiu uma hora e foi pro estádio.

Noroeste 1 x 0. Pelé 1 x 1. Noroeste 2 x 1, Pelé 2 x 2. Noroeste 3 x 2, Pelé 3 x 3. Em cima da hora, o rei invade a área, dribla os zagueiros e sofre pênalti. Pelé 4 x 3. Os jogadores do time local queriam bater no juiz Albino Zanferrari. Pelé toma a frente e diz ‘aqui ninguém bate nele’. O jogo acaba e sai festejando a vitória. E ainda querem fazer comparações com o Rei?
... francamente!
**
Em 5 de maio de 2002, mês e pouco antes da Copa da Ásia, a última que o Brasil ganhou (o Penta!), com Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho brilhando nos gramados do Japão e Coreia do Sul, Pelé escreveu, confessando que a bola – deusa e amante do Rei - não abandonava o cidadão Edson nem dormindo:
“Sonhos reais
Apesar de ter parado de jogar há 25 anos, continuo a sonhar com futebol. Em sonhos, executo jogadas, dribles, bicicletas, chutes... No tempo do Santos e da Seleção meus companheiros de quarto me contavam que eu falava à noite. Se tivesse ido pra cama logo depois do jantar tinha pesadelos e gritava durante o sono. Dias atrás, a Assíria, minha mulher, me disse que tenho dado chutes dormindo”.
**
Edson Arantes, o cidadão generoso de Três Corações, nos deixou em 29 de dezembro de 2022. Pelé, a entidade, é eterno. Um encantado, uma entidade. Onde tiver uma bola quicando... ele está.
Viva o Rei!


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