Crônicas de Copacabana
Nara Franco
14/03/2018 às  16:46

A tropicália carioca e a morte de Bebeto Freitas

Outra curva surreal: a tal "intervenção" militar na cidade, que até agora não disse a que veio. Li há pouco que termina em setembro


   A pintora Tarsila do Amaral está sendo homenageada no MOMA, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Nada mais justo. Tarsila foi um ícone moderno e aqui no Brasil ninguém dá a devida bola para o seu trabalho. Porque o Brasil é surreal demais para Tarsila. Estamos em um modo muito mais avançado. Vejamos: a surrealidade brasileira começa pelo fato de o quadro mais  famoso da pintora pertencer a um museu argentino e não estar em terras brasileiras. Nem Salvador Dali seria capaz. 

   Aproveitando o gancho de Tarsila, comecei a pensar na nossa Tropicália, no nosso antropofagismo diário. Semana passada o Ministério Público descobriu quartos de motel na cadeia de Benfica. Lá estão presos os integrantes da gangue do seo Cabral. Como dizem na Internet, o brasileiro devia ser estudado pela Nasa. Não basta ter regalias na prisão: tem que criar um clima para a visita íntima, colocando espelho no teto, luz vermelha, quadros eróticos. 

   Nem Pablo Escobar foi tão criativo quando construiu sua própria prisão na Colômbia. Fico imaginando a cara da Ministra Carmem Lúcia se tivesse flagrado esse pérola em uma de suas inspeções à presídios. Ficou faltando a pista com luzes coloridas, frigobar e hidromassagem. Não duvido que não estivesse nos planos. 

   Outra curva surreal: a tal "intervenção" militar na cidade, que até agora não disse a que veio. Li há pouco que termina em setembro. Acho que o presidente se arrependeu. Como jogada de marketing, deu errado. O Rio de Janeiro continua seu cotidiano de bala perdida matando grávida, roubos a qualquer hora do dia e tráfico de drogas. 

   Vamos reconhecer que aquele clima de baderna generalizada acabou, mas tem assalto toda hora, as ruas à noite estão desertas e o comércio agonizando. Voltando da aula de Muay Thay, que fica a quatro quadras da minha casa, percebi que a República de Copacabana está deserta às 20h. Nem os botecos se salvam. Eu, que ando no mundo da lua, só me dei conta quando meu padrasto falou: "é medo". Pura verdade. 

   As pessoas acabam criando um cotidiano diferenciado em torno da violência. Uma amiga antropóloga escreveu sobre isso no Facebook. A primeira reação dela em Nova Iorque ao comprar um IPhone foi esconde-lo. Ficamos automáticos. Eu, quando viajo para o exterior, tenho como reação o contrário: ando de madrugada, falo no telefone, tiro mil fotos, uso relógios. É uma libertação. 

   Aqui estamos sempre preocupados em esconder. Uma senhorinha, na fila do mercadinho de legumes, me conta que só sai de casa com um porta moedas com o dinheiro contado. Um amigo jornalista anda com dois telefones: um de uso (bom) e o outro de assalto (modelo antigo). Vai explicar isso para um estrangeiro? Tropicalismo modernista tupiniquim. 

   Quando vejo aqueles tanques de guerra no Aterro do Flamengo (quando o presidente esteve aqui) fico pensando se tem bala ali e onde e como vão usa-lo. Vão atirar em quem? Aquela demonstração de "força" serve para que? Para dar satisfação aos eleitores do Bolsonaro, só pode. 

   Efeito imediato, ninguém vê o resultado concreto. Uma bala de canhão para inibir o malandro que rouba o cordão de ouro de quem está correndo no Aterro. Para se proteger, as pessoas criam páginas no Facebook alertando sobre assaltos. Minha irmã fica me atualizando sobre os delitos do bairro de Botafogo. Deus me livre! Ela anda paranóica. Eu fujo disso. Afinal, o que tiver de ser, será. 

   Aqui para os meus lados, as coisas são bem tranquilas, apesar de um casal de sem teto estar morando na rua, pedindo dinheiro e comida sempre que eu passo. As idosas ficam com pena e acabam dando de um tudo. Até cachorro eles têm. Não me achem cruel, mas pena mesmo eu sinto do bichinho e até comida para ele eu dei. Espero que Deus entenda minhas razões. 
                                                                             ****

   Nota: Bebeto de Freitas foi um ícone do vôlei. Com ele, o esporte brasileiro saiu do puro amadorismo para um profissionalismo vitorioso. Quando estava na escolinha de vôlei do Bradesco, lá pelos idos de 1986, vi ao lado dele, na lanchonete do clube, um jogo entre Brasil x França válido pelo Mundial. Ele levantava, gritava, jogava a cadeira no chão, dava instruções. 

   Nunca esqueci essa cena. Na época, com 14 anos, mal sabia o peso daquele cara que eu via todos os dias e que era "só" o técnico do time adulto. Ontem, ele morreu pouco depois de uma entrevista coletiva. E eu fiquei triste como se tivesse perdido um amigo. Fico triste mesmo quando gente assim, de bem, inovadora, revolucionária, vai embora. Sem eles, o Brasil fica ainda mais surreal.


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