Literatura
Rosa de Lima
05/10/2024 às  11:44

ROSA DE LIMA COMENTA “NOTAS DE UM FILHO ADOTIVO”, DE JAMES BALDWIN

James Baldwin é considerado um dos grandes ensaístas dos EUA do século XX


  

   Uma das tarefas mais árduas para uma comentarista de literatura é abordar a obra de um polemista que passou pela fase de exaltação à sua literatura (1953/1965), experimentou um período de ácidas críticas e baixa aceitação junto à comunidade afro norte americana - nas relações com Malcolm X e Eldridge Cleaver (Panteras Negras) - tendo dificuldades em  defender seus pontos de vista (final da década de 1960); e passou a ser relido e  novamente apreciado pelo movimento negro internacional que aborda com profundidade o tema racial, a sexualidade e a homofobia. 

   Em “Um perfil de James Baldwin”, Márcio Macedo, comenta que dentro da comunidade afro-americana (EUA), Baldwin ocupava uma espécie de “não lugar, sendo objeto de desconfiança devido à sua ambivalência sexual”. Eis, pois, assim nos parece, o fulcro da questão. O movimento negro que se radicalizou em ações sobretudo com os “Panteras Negras” não admitia juízos que considerava contraditórios sobre a causa. Noutras palavras, sinalizavam ou exigiam que o autor, que era negro, norte americano e homossexual, fosse mais firme em suas postulações. E Baldwin não mudou a sua trajetória em pensamentos e ideias. 

   Falamos, então, de forma mais direta, de um dos trabalhos do ensaista James Baldwin (1924/1987), autor de textos publicados em revistas a partir do final da primeira quadra do século XX e depois, editados em livros, que despertaram a atenção do público norte americano e se constituíram, em sucessos internacionais mais adiante. Ainda hoje despertam a atenção e são objetos de estudos e debates. E, se não senão influenciaram gerações diretamente, tiveram seu lugar ao sol dos debates. 

  Então, quando comentamos o título "Notas de um filho adotivo", publicado nos Estados Unidos, em 1953 – e é importante verificar o contexto da época, 8 anos após a II Guerra Mundial em que os EUA se envolveram até o pescoço e milhares de negros lutaram e morreram na Europa. 

  A edição que li é da Companha das Letras (tradução de Paulo Henrique Britto, capa Daniel Trench, com comentários adicionais de Teju Cole [Um corpo negro], Paulo Roberto Pires [E o mundo jamais voltou a ser branco] e Márcio Macedo [Um Perfil de James Baldwin] introdução de Edward P. Jones, 2020, SP, 245 páginas, R$55,00 nos portais da internet).

  Teremos o cuidado de falar especificamente desta obra, a que motivou a inicial de sua trajetória, numa mostra da força de sua linguagem, do seu verbo critico, o que se encontra mais aprimorado em outras de suas publicações.

  Porém, cada dia sua agonia, fiquemos com a abordagem crítica sobre "Notas de um Filho Adotivo", diria, uma espécie de livro emblema ou que contém uma nova e diferenciada postura em relação ao negro norte americano (a visão do negro sobre o negro), o autor que nasceu e se criou no Harlem, em NY, teve problemas psicológicos sérios no relacionamento com seu pai e viu os negros, integrantes de sua família e os do Harlem - por extensão dos Estados Unidos - também passíveis de críticas por não entenderem o seu papel na sociedade. Ou ao menos, como ele imagina que deveria ser. O que, convenhamos, já se torna polêmico porque ninguém é obrigado a seguir pontos de vista alheios.

   O autor dividiu o ensaio em três partes. Na primeira, com o subtítulo de “Um romance de protesto” faz comentários ácidos ao até então aclamado livro de Harriet Beecher Stowes, “A Cabana do Pai Tomás” um “best-seller” que era intocável, escrito em 1852, e que aborda a vida de pobres escravos nos EUA. Diz o autor: “A Cabana do Pai Tomás é um romance péssimo e seu sentimentalismo virtuoso e presunçoso tem muito em comum com ‘Mulherzinhas’ (romance infantil de Luisa May Alcott, publicado nos EUA em 1868). () É um catálogo de violências”. Indaga Baldwin por que a autora não questiona em nenhum momento o comportamento dócil dos negros.

  “Aqui, negro equivale ao mal, e branco, ao bem; cônscia da necessidade de boas ações, a autora se não podia expulsar os negros – uma massa miserável e oprimida, que, como uma obsessão, parecia se impor ao seu olho interior – também não podia abraça-los, sem purifica-los do pecado”. 

   Adiante, Baldwin situa: “Não esqueçamos que oprimido e opressor estão unidos no interior de uma mesma sociedade; eles aceitam os mesmos critérios, compartilham as mesmas crenças, dependem da mesma realidade”. 

  No ensaio seguinte, intitulado “Muitos milhares de mortos” o autor vai ao âmago da questão, do significado do que representa ser negro nos EUA, de como são controlados na sociedade e as técnicas que desenvolveram para sobreviver. Nesse texto é muito mais contundente sobre a identidade do negro. Diz: ”O negro nos Estados Unidos definido de modo sombrio como a sombra que atravessa a vida da nação, é muito mais do que isso. Ele é uma série de sombras, criadas por ele mesmo, entrelaçadas, que agora combatemos, impotentes. Pode-se dizer que o negro nos Estados Unidos só existe mesmo nas trevas de nossas mentes”. 

   Em seguida, escreve sobre Hollywood um ensaio intitulado “Carmen Jones: um negro não muito” um filme de 1955. “Em Hollywood – comenta o autor – a imoralidade e o mal (que são sinônimos no léxico de lá) são sempre severamente punidos, embora seja a trajetória do transgressor – cruel, talvez, mas de modo algum desprovida de encantos – que nos mantenha sentados na beira da poltrona, e o transgressor (a) que conte com toda nossa simpatia. 

  Em Carmen Jones o paralelo implícito entre uma cigana amoral e uma negra amoral é a premissa básica da história; ao mesmo tempo, porém, levando-se em conta todas as mudanças que aconteceram entre ‘O Nascimento de uma Nação’ (filme de 1915, de D.W. Grriffith que celebra a Ku Klux Kan) até agora, é importante que o filme sempre repudie qualquer insinuação de que os negros são amorais – o que se torna possível, dado que o papel do negro na psique nacional, repudiando-se qualquer insinuação de que os negros não sejam brancos”

   O autor critica e muito o desempenho da atriz Dorothy Dandridge no papel de Carmen, ela, um ícone entre os negros do cinema norte-americano da década de 50 – “é uma moça cor de caramelo, que usa roupas muito vistosas e chamativas, mas no fundo uma pessoa mais doce do que chamativa”; e Harry Belafonte: “tem uma pele mais escura e uma beleza inexpressiva como a dela”. A expressão ‘colored’ – moça de cor ou rapaz de cor – caiu em desuso nos EUA.

   Na segunda parte do livro, Baldwin vai a raiz da cultura negra e do racismo nos EUA (em nenhum momento se utiliza diretamente da ´palavra racismo, deixando esse aspecto subentendendo nos textos) falando sobre o Harlem. Diria, também, a parte que desperta mais atenção do leitor brasileiro informado de já ter ouvido falar nesse bairro de NY e tem sempre interesse de conhecer um pouco mais do que conhece sobre ele. Assim, o texto de Baldwin tem esse duplo interesse e é o mais contundente. Diz: “Deve haver mais igrejas no Harlem do que em qualquer gueto desta cidade, igrejas que vão de vento em pop todas as noites algumas estão cheias de pessoas rezando todos os dias. Esse fato exemplificaria a simplicidade e a boa vontade essenciais do negro; mas na verdade estamos diante de uma atividade emocional marcada pelo desespero”. 

   Prossegue o autor com o texto “Viagem a Atlanta” uma experiência desastrosa de seu irmão Davi do “The Moderes” numa campanha política; e envereda no texto principal “Notas de um filho adotivo” em que fala da morte do pai no mesmo dia em que nasceu a sua última filha, o papel de sua mãe na família e relação tumultuosa que teve com o pai, pastor protestante decadente, machista e temente a Deus. O texto é duro, sarcástico, forte e ao mesmo templo sublime. Nunca tinha visto em outros autores, palavras tão ácidas contra um pai partindo de um filho. 

 “Minha tia começou a chorar no momento em que entramos no quarto e o vimos deitado, murcho e imóvel, como um macaquinho preto (). Na verdade meu pai não estava naquele quarto conosco, já havia finalmente partido em sua viagem; e, embora minha tia me dissesse que ele tinha afirmado que ia se encontrar com Jesus, não ouvi nada além daquele assobio em sua garganta”, escreveu.

  Na terceira parte do livro, Baldwin fala de sua experiência morando em Paris com quatro subtítulo “Encontro à margem do Sena: negros e pardos”, “Uma questão de identidade”, “Igualdade em Paris” e “Um estranho na aldeia”. O autor não modifica seus conceitos sobre o negro norte americano no seu país, porém, adiciona ao seu conhecimento intelectual novas informações e novos olhares sobre o negro e a humanidade na medida em que Paris era um outro mundo, com cultura diferenciada, língua e modos de vida. O texto da aldeia se passa em Leukerbad uma comunidade suíça, onde tanto o autor, como a comunidade se surpreendem com a presença de um negro, e ele expõe essas visões fantasmagóricas. 

   O livro, portanto, é um ensaio pessoal – quase uma autobiografia – e os leitores se quiserem conhecer mais a vida literária deste autor necessita ler outros dos seus livros. Ainda assim, “Notas de um filho adotivo” é um bom começo.
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