Antes de comentarmos sobre o poema épico do "Descobrimento da Bahia" esclareço aos leitores que se trata de um gênero literário cuja composição consiste em narrativa sobre acontecimentos históricos ou míticos. Portanto, texto que se dedica a expor episódios gloriosos, engrandecer seus personagens principais e registrá-los para a posteridade suas realizações.
É o caso de "Os Lusíadas", de Luiz Vaz de Camões, poeta português que narrou em 8.816 versos a empreitada das grandes navegações portuguesas ambientadas em meio a recorrentes menções mitológicas, como a ira de Baco, contrário aos lusitanos, e a afeição de Vênus, que lhes inspirou boa sorte na viagem.
As epopeias são tão antigas quanto a história da literatura. Os sumérios, por volta de 2000 a.C., narraram em versos a chamada Epopeia de Gilgamesh, considerada a obra literária mais antiga da humanidade. E, fundamentou-se enquanto gênero literário na Grécia Antiga, com as composições atribuídas ao poeta Homero, intituladas Ilíada e Odisseia.
É preciso, no entanto - observação que faço aos meus leitores - explicar que os poemas heroicos misturam a realidade histórica com as lendas e não se deve confundir uma coisa com a outra.
Já que vamos comentar o poema épico do frei Santa Rita Durão intitulado "Caramuru" (Editora Martin Claret, 2011, R$45,00 no Estante Virtual) com sub título "Poema Épico do Descobrimento da Bahia", uma coisa é a vida real de Diogo Álvares, o Caramuru, que aportou na Bahia entre 1509/1511 e viveu em Salvador até sua morte sendo sepultado na Basílica da Sé, a primacial, em 1557, e a outra é o texto de Durão, frade mineiro que morou em Portugal, no século XVIII, e que faz uma narrativa mais abrangente da Bahia e da colonização do Brasil.
O que se configura como mais relevante é o fato de que foi este livro que imortalizou Diogo Álvares na literatura e tornou conhecida e registrada a lenda que povoava o meio e as mentes baianas nos séculos XVI e XVII, dando conta de que Diogo fora um náufrago que sobreviveu a uma tempestade e destruição do navio em que viajava até a Baía de Todos os Santos, indo seu corpo vivo parar numa praia nas proximidades de uma aldeia tupinambá no atual bairro do Rio Vermelho, em Salvador.
Ele teria conseguido o milagre de não ser devorado pelos tupinambás antropófagos porque, no momento de sua captura, teria dado um tiro de arcabuz num bando de aves que sobrevoavam o local no ato de sua prisão. E, diante disso, com uma das aves caindo morta aos pés do mayoral da aldeia foi poupado e aclamado como o "Deus do Trovão".
Essa, no imaginário popular é a lenda. Na real, ao que se pesquisa até hoje - ainda sem uma conclusão definitiva - é que Diogo, um marinheiro português, foi deixado num improvisado porto da Baía de Todos os Santos - atual Porto da Barra - com o objetivo de ser um interlocutor (homem do comércio exterior) na compra de madeira. A origem natal do português e essa aventura econômica nunca foram descobertas, em si, mas, o importante é destacar que Diogo existiu em carne e osso e foi um personagem relevante da história da Bahia e do Brasil formatando uma das primeiras famílias miscigenadas do Brasil, gente poderosa na Colônia.
O autor do poema épico "Caramuru", José de Santa Rita Durão, nasceu em Cata-Preta, Minas Gerais, em 1722, filho de um português e uma paulistana, e conclui os estudos iniciais no Colégio dos Jesuítas, Rio. Mudou-se para Lisboa, ainda muito jovem e entre 1733 e 1736 faz os estudos secundários nos Oratorianos na capital portuguesa, ingressando na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, aos 15 anos de idade, no Convento da Graça, em Lisboa. Depois seguiu para Coimbra onde estudou teologia ordenando-se presbítero tornando-se doutor em 1756.
Não há uma data certa quando começou a escrever o poema épico Caramuru. É provável que tenha sido a partir de 1764 quando o papa Clemente III o nomeia bibliotecário da Livraria Pública Lancisiana, onde permaneceu por 9 anos, após deixar Portugal diante perseguição por ter feito críticas aos jesuítas. O certo é que a primeira edição data de 1781 editado pela Régia Oficina Tipográfica, Durão já morando novamente em Coimbra após a queda do Marquês de Pombal (1777). Três anos após a primeira edição de "Caramuru", Durão morre (1784) sendo sepultado na Igreja do Hospício do Coleginho, Alfama, Lisboa.
Quem já teve a oportunidade de ler "Caramuru" pode observar nos poemas ao estilo camoniano (de Camões) em decassílabos - dispostos em oitavas com esquemas de rimas fixas ababbabcc - e uma quantidade enorme de informações sobre o Brasil colonial e os nativos de várias regiões, daí o autor ser considerado o introdutor do indianismo no Brasil. São 900 poemas em 10 cantos.
Fica-se a pensar como Santa Rita Durão conseguiu tantos dados sobre om indigenismo no Brasil uma vez que teve uma vida atribulada, sobretudo após sermão realizado em 1759, em que responsabilizou os jesuítas pelo atentado à vida do rei Dom José, fugiu para a Espanha, depois França (onde é preso) e indo morar na Itália. É provável que, nos 9 anos em que foi bibliotecário, em Roma, tenha amealhado esses conhecimentos sobre o Brasil e teve conhecimento da lenda de Diogo Álvares e escrito os poemas.
Era de se supor que o autor tivesse se concentrado na Bahia, a terra onde Diogo Álvares naufragou e viveu, em área da atual cidade do Salvador, porém, ele vai bem mais adiante narrando cenas de guerras envolvendo as invasões francesas e holandesas, a fauna, a flora e os costumes dos nativos. Ainda que Durão possa ser avaliado como primoroso na produção dos versos para fazê-los necessitou de um arcabouço enorme de informações.
No canto V poetiza: Niterói, dos tamoios habitada/Por largas terras seus domínios estende/ Famosa região pela enseada/ Que uma grã barra dentro em si compreende/ Esta praia dos vossos frequentada/Que pondo de discórdia entre nós pende/; Custará, se pressago não me engano/ Muito sangue ao francês e ao lusitano.
Adiante versa sobre o sul do país: São Vicente e São Paulo os nomes deram/ As extremas províncias que ocupamos/ Bem que ao Rio da Prata se estenderam/ As que com próprio marco assinalamos/ E por memória de que nossos eram/ De marco o nome no lugar deixamos/ Povoações que aos vindouros significa/Onde o termo espanhol e o luso fica.
Vê-se, pois, que a pena de Durão não se limita a Bahia. Só depois dos prólogos iniciais sobre a descoberta do Novo Mundo, no Canto 2, é que vai falar do naufrágio: Era a hora em que o Sol na grã carreira/ Do tórrido Zenith (sol a pino) vibra igualmente/ E que a sombra dos corpos companheira/ Na terra extingue com o raio ardente,/Quando ao partir a turba carniceira/ Se vi Diogo só na praia ingente/ Entre mil pensamentos, mil terrores/ Que a dor faz grande e o tremor maiores.
E relata a lenda que deu origem a Caramuru: De Tupá sou (lhe disse) onipotente/ Humilde escravo e como vós me humilho/ Mas do horrendo trovão, que arrojo ardente/ Este raio vos mostra do que sou filho/ (Disse e outra vez dispara em continente/ Do meio do relâmpago, em que brilho/ Abrasarei qualquer, que ainda se atreva/ A negar a obediência ao grão Gupeva.
Durão também navega sua pena pela fauna e flora brasileiras: Juritis, paratis, tenras e gordas/ A hiraponga no gosto regalado/ As marrecas que nos rios enchem as bordas/ As jacutingas e as araçã prezada/ E se do lago na ribeira abordas/ De galeirões e patos habitada/ Verás correndo as águas na canoa/ a turba aquático que nadando voa.
Tem mimosos legumes, que não cedem/ Aos que usamos na Europa mais prezados/ Gengibre, gergelim, que os mais excedem/ Menduhim, mangalô, que usam guisados/ Alguns medicinais com que despedem/ Do peito esatilicidios ricados/ Tem o cará, o inhame, e em copia grata/ Mangarás, mangaritos e batatas
O poema, no geral, é bem abrangente e o autor dedica muitos versos a França Antártida - a ocupação francesa na Baía de Guanabara - e as invasões holandesas na Bahia e em Pernambuco que se deram, essas últimas, no início do século XVII, quando Diogo Alvares e Catarina já haviam morrido há mais de 50 anos.
Assim narrou a construção da igreja da Graça: Por santa invocação foi aclamada/ A senhora da Graça e com fé pia/ Foi desde aquele dia venerada/ Singular protetora da Bahia/ Igreja primitiva dedicada/ Em meio às trevas dessa gente impia/ Memorável (se a fama é verdadeira)/ Porque em todo o Brasil fora a primeira.
E no verso final comenda: Por fim, publica do monarca reto/ Em favor de Diogo e Catarina/ Um real honorifico decreto/ Que ao seu merecimento honra destina/ E em recompensa do leal afeto/ Com que a coroa a dama lhe consigna/ Manda honrar na colônia lusitana/ Diogo Álvares Correia, de Viana.
O que podemos perceber é que, como todo poema épico, há uma amplitude maior do fato em si, exagera-se nas tintas sobre o herói em tela, Diogo Alvares, que, como sabemos, não há uma comprovação histórica de que tenha nascido em Viana do Castelo, norte de Portugal, muito menos lutado em várias batalhas e tem usado canhões, espadas e pólvora em contendas e amado e endeusado tantas mulheres como a Moema que se matou por ele o ter abandonado e há imensas dúvidas dos relatos dos seus feitos.
O importante, no entanto, é a obra em si, a qualidade dos versos, as informações (reais) contidas neles sobre muitos aspectos da colonização primária do Brasil e o louvor em ter escrito um livro tão especial numa época de grandes dificuldades em que teve em sua vida pessoal e no recolhimento de informações sobre o Brasil, uma vez que, embora fosse mineiro foi para Portugal menino e nunca mais retornou ao Brasil.
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