Jô Soares foi um mestre na arte do humor falado e interpretado no teatro, no cinema e na televisão com seus personagens criativos e que se tornaram populares no país. O humorista teve uma vida longeva (1938/2022) e durante anos também foi apresentador de um "talk-show" na TV com entrevistas de personalidades onde, também, o humor foi a principal característica ambientado com uma banda de jazz com craques da música e do riso, especialmente com Derico (sax) e Bira (baixo) e o próprio eventualmente tocando bongô.
Jô, portanto, era múltiplo e enveredou pela literatura um campo mais difícil de interpretação do humor, porém, sem trocadilho, "tirou de letra" e escreveu vários livros um dos que mais aprecio e comento intitulado "Assassinatos na Academia Brasileira de Letras" (Editora Schwarcz - Companhia das Letras, 252 páginas, capa Hélio de Almeida, 2005, R$30,00) onde narra com humor refinado mortes que caracterizou com sendo os "crimes do penacho" pontilhado de personagens admiráveis como um alfaiate anão (o criminoso), um policial detetive à moda antiga - displicente na veste, porém, espada e eficiente, um legista de longo curso, uma mulher lasciva e boazuda e os acadêmicos, mortos e vivos.
O enredo é fantástico e os leitores vão demorar para descobrir quem era o homicida que usava o termo "Brás Duarte" encimado com a figura de um pássaro, tal como o policial que só vai fazê-lo no final na trama, o que dá mais prazer em lê-lo. E o que é mais sintomático, Jô mescla personagens da Academia, reconhecidamente uma entidade austera, empoderada com seus fardões e homens circunspectos, sendo alguns deles reais tais como Olavo Bilac, Machado de Assis, etc, com os ficcionais, estes, também, com traços característicos de acadêmicos, em crimes apavorantes, um a um, praticados com envenenamento.
Mais sutil ainda é o modo operandi do homicida no envenenar os "acadêmicos" o qual se dedicava com esmero em confeccionar os fardões em sua tenda "Dedal de Ouro" num Rio de Janeiro ambientado no ano de 1924 onde o mundo das artes e das letras girava na Rua do Ouvidor e adjacências e o jornal "O Paiz" era o porta- voz da cidade. O contexto histórico do Brasil via Rio é sintomático na obra o autor, de certa forma, até abusando um pouco da erudição para rechear a trama, o que desvia de certa maneira a atenção do leitor dos crimes em si.
Quem já leu Agatha Christie e Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes) e as histórias envolvendo os detetives Hercules Poirot (inglês) e August Dupin (criação de Edgar Allan Poe) percebe as diferenças, uma vez que, esses autores clássicos tratam, especificamente, nas cenas dos crimes e prende os leitores nessas ambientações.
Jô, pelo menos em "Assassinato na Academia" traz muitas referências de contextos históricos que encorpam o livro, mas ainda que possam ajudar na compreensão da trama é um recheio até indispensável. Há quem goste dessa erudição como uma espécie de recheio do bolo e há, aqueles, como eu, que preferem o crime seno analisado no suspense apenas policial.
Mas também é bom lembrar que Jô era um humorista e não um escritor de ficção de temas policiais, além do que, um intelectual, um homem de vasta cultura e, por isso mesmo, deva ter colocado toda essa ambientação da forma que colocou.
Quem poderia crer que o alfaiate Camilo Raposo, um anão, pudesse praticar atos tão perversos logo com representantes da nata intelectual se utilizando ensinamentos medievos da Venificorum Secta, a seita dos envenenadores fundada pelo monte guerreiro Isidoro de Carcassome, egresso dos Cavaleiros da Ordem dos Templários por práticas de magia negra, em 1311, antes de extinção da ordem e antes que o último dos cavaleiros, Jaques de Molay, fosse queimado vivo - o que aconteceu três anos depois - por ordem do rei Felipe, o Belo.
O livro, traz, ainda uma base historiográfica grandiosa na medida em que o autor busca dar ao personagem principal do romance, o anão envenenador, todo um arcabouço de conhecimento que estudou, analisou e aprimorou a partir da seita medieval a Veneficorum Secta que, durante o século XIX já havia desaparecido de cena.
E mais, no dizer do cardeal Puzzolli, prócer do Ufficio di Metafisica do Vaticano nos idos de 1898, declara que, realizada escrupulosa devassada, "pode afirmar que essa seita não passa de uma lenda mediévica, tão fantasiosa quanto o Santo Graal".
Vê-se, pois, onde Jô coloca o investigar Machado Machado, o Machadinho, comissário à moda antiga, apelidado de "Coruja" cujo nome seu pai que se chamava Rubinho Machado, escrivão de um cartório de imóveis, tinha tamanha admiração por Machado de Assis que colocara seu nome Machado, sobrenome Machado, um homem alto e bonito, de unhas bem tratadas no Hotel Avenida e que usava um chapéu palheta trançada, desde que vira, um ano antes, "o Homem Mosca" com Haroldo Loyd".
É esse personagem admirável, aliado ao médico legista Gilberto de Pena Monteiro, meticuloso, perfeccionista, que vão descobrir que havia praticado os crimes contra os acadêmicos e o chapéu palheta e não a pistola que o comissário usava na cinta quem vai abater o criminoso atirando-o num panelão da mistura venenosa escaldante que se dissolve nela.
Pareceu-nos um tanto quanto piegas já no final do livro a personagem Galatea, filha do poeta EuzéBio Fernando, com quem o comissário em pouco tempo fazia amor, "desfrutando o momento, um descobrindo com vagar o corpo do outro", uma médica jovem e sensual, que arremata as derradeiras pistas para chegar ao criminoso, ela própria se metendo na investigação e sendo móvel, no final, de cenas no estilo James Bond indo sozinha até a alfaiataria Dedal de Ouro inquiri o anão que a coloca em perigo de morte sendo salva, naquele clima de suspense, pelo comissário Machado.
Eis, em resumo, a obra de Jô Soares. Diria que é um livro prazeroso com esses toques de humor e ensaios históricos da cultura mundial e sobretudo do Rio de Janeiro da época do Pereira Passos e das mudanças que aconteceram na década de 1920.
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