Literatura
Rosa de Lima
31/03/2023 às
10:17
ROSA DE LIMA COMENTA "A ERA DO NIILISMO", LUIZ FELIPE PONDÉ
Um excelente livro sobre o niilismo - a filosofia da descrença, do nada - interpretando vários momentos desde o século XIX até os dias atuais
O filósofo Luiz Felipe Pondé é uma dessas aves raras do Brasil que analisa o comportamento da sociedade brasileira a luz do entendível aos normais ou ao menos com uma dialética que busca - no nosso entendimento - uma aproximação da verdade. Às vezes é difícil entender seus argumentos, o que é próprio de quem estuda a filosofia a fundo e foi capaz de escrever uma obra como "A filosofia na religião em Dostoiévski" e quem leu "Os Irmãos Karamázov" deste autor russo sabe do que estamos falando, pois, haja conceitos, frases, diálogos e outros no enredo deste livro que Sigmund Freud considerou "o maior romance da história da literatura".
Então, meu preclaro leitor minha adorável leitora, ler Felipe Pondé também é uma arte, exige-se uma atenção redobrada, cautela, pois muitos dos seus enunciados por mais que os tenha simplificado ainda assim são complexos e comportam mais de uma interpretação, aliás, próprias dos filósofos do livre pensar.
Imaginem vocês que vamos comentar a sua mais recente obra intitulada "A Era do Niilismo - notas de tristeza, ceticismo e ironia (Globo Livros, 159 páginas, 2021, capa Cris Viana - Estúdio Chaleira, projeto gráfico Douglas K. Watanabe, RJ, R$39,90 Estante Virtual) tema antigo (sec XIX) e atualíssimo ao mesmo tempo, Pondé advertindo nas linhas iniciais da sua introdução que "a modernidade é um surto psicótico razoavelmente bem sucedido (até então)" o que ele denomina "a era do niilismo" - filosofia que refuta tradições e recusa toda a forma de autoridade e busca a verdade em si. Ou seja, a filosofia cujo conceito básico é a descrença, o nada.
"O nada - na concepção de Pondé - não é uma abstração, pelo contrário, é muito concreto na sua forma de aparição ao intelecto, ao afeto, ao envelhecimento, à cultura, à política, enfim, à sociedade na sua esfera pública e privada".
Ora, se o niilismo prega a cultura do "nada" como entender que esse "nada" existe? Esse é o x da questão desde os primeiros esboços conceituais do niilismo pelos filósofos alemães do século XVIII até o surgimento do principal cultor e difusor dessa cultura, Ivan Turguêniev, com o livro "Pais e Filhos" (1862), e suas críticas ao modelo político e social do czarismo russo. Seria, assim, a pregação do "nada" estabelecido - a opressão, o mandonismo, o servilismo - em contraste a um "nada" que poderia despertas mentes e provocar revoltas, mais adiante, desencadear revoluções.
Felipe Pondé conceitua que "este 'nada' existe e surge das relações sociais em interação com uma espécie 'viciada' no encontro com o sentido das coisas da vida, sustentado de forma longa nas práticas quase imutáveis da evolução humana".
Para entender melhor o niilismo é preciso ver algumas de suas práticas, de exemplos objetivos a partir de conceitos estabelecidos no âmago da literatura para poder entender os conceitos de Felipe Pondé, em "A Era do Niilismo" e, sobretudo, no subtítulo "notas de tristeza, ceticismo e ironia". Pondé diz que "a era do niilismo é o desespero diante da falta de objetividade das crenças humanas causada pela própria emergência do 'progresso' (mobilidade) moderno". E, dividiu seu percurso em três cenários distintos: a literatura russa do século XIX - em que o niilismo foi descrito de forma mais ampla e consistente; alguns filósofos a partir do mesmo século compondo o que chamou de antropologia do niilismo; e notas da síndrome do niilismo no mundo contemporâneo".
Evidente que não é obrigatório ler os russos mais famosos daquela época - Tolstói, Dostoiévski, Thecov, Turguêniv, Gógol, etc - para entender o que comenta Pondé, embora, seria salutar aos leitores essa leitura, não só para entender o niilismo, mas saborear o melhor da literatura russa, até porque o autor vai mostrar em suas notas (assim classifica seu trabalho) a hermenêutica russa - a interpretação de parte desta literatura - e abre as portas do extraordinário romance de Turguêniev (Pais e Filhos) com destaque para o personagem Bazárov "o jovem que tem o luxo de não crer em nada".
No sumário, o autor oferece um roteiro didático em cada uma das três partes do livro, na primeira, destacando a literatura russa do século XIX, Ivan Turguêniev e o conceito do homem supérfluo; Fiódor Dostoiévski entre supérfluos e niilistas a partir de "Os Demônios"; Alexandre Herzam e seu debate com Turguêniev; o por que da tristeza, ceticismo e ironia; Liev Tolstói e Anton Tcékhov, Nicolau Gógol (coreografia macabra do nada), Turguniêniv e "Memórias de um Caçador"; e Dostoiévski, o niilismo russo e porque ele é o espírito de nossa época.
Na segunda parte trata da antropologia niilista - a angústia como essência da vida psicológica em Soran Kierkegaard; as portas do inferno na alma; a forma mercadoria da vida contemporânea em Theodor Adorno; e os fundamentos da era niilista. Já na terceira parte, que classifica de notas no varejo: uma moral mínima trata do marketing niilista, a educação, a família, a politização niilista dos afetos; o niilismo e a política; a melancolia; o capitalismo; as redes sociais; a pandemia (Covid); o século XXI e o encontro com o nada.
Os leitores por este sumário podem avaliar que esta obra de Pondé, malgrado conter apenas 159 páginas, é densa em conteúdo interpretativo com interrogações no campo da psicologia. Acredito, no entanto, que os leitores terão um bom proveito de suas notas, ainda que seja limitado dado as dificuldades de interpretar alguns conceitos, a priori, em especial, o subtítulo "tristeza, ceticismo e ironia", que seria uma resposta de Alexander Herzem a um texto do historiador francês Jules Michelet sobre o "caráter mórbido da inteleligência russa do século XIX".
O excesso de tristeza, ceticismo e ironia que os russos experimentavam em suas vidas eram os responsáveis pelo "caráter mórbido" e Pondé deduz que a literatura russa do século XIX é uma "hermenêutica da modernidade". O filósofo brasileiro entende que identificar o burguês não foi um privilégio da literatura russa, "os franceses o fizeram de forma brilhante também" e, no caso russo, foi o efeito provocado pela rapidez "de viver esse processo da passagem do neolítico à modernidade, e a revolução sonhada pelos ocidentais, num espaço de 50 anos, levando as ideias ocidentais ao extremo da prática, sem os anteparos críticos e institucionais que o Ocidente tinha construído ao longo de séculos de modernização, que funcionaram como freios e anteparos aos extremos das práticas políticas e sociais".
Tem sentido essa observação de Pondé e sua amplitude requer conhecimentos históricos dos autores russo e da obra "O que Fazer", de Tcernitchévski, Lenine mais afeito ao agir do que pensar e filho dileto (em pensamento e leitura) deste autor "abandonará a idealização do mujique em favor da opção marxista pelo proletariado industrial da época, ainda que este nunca tenha sido idealizado por Lenine, que considerava o povo em geral incapaz de tomar, pelo menos naquele momento as rédeas da própria vida".
O importante, diria, é entender que o niilismo praticado pelos autores russos do século XIX, sobretudo Turguêniev, foi uma peça importante no processo que desencadeou a Revolução Bolchevique de 1917 e o fim do tzarismo. E vai se dar mais com o proletariado à frente do que com os mujiques (servos rurais), mas, é relevante destacar que em "Memórias de um Caçador", os contos de Tuguiêniev que exaltam a vida de sofrimento dos mujiques, o latifúndio e a vida de servidão em que viviam, os levantes e atentados que aconteceram em São Petesburgo contra o czarismo vão se dar exatamente na segunda quadra do século XIX, portanto, primórdios, do movimento revolucionário.
O filósofo pela USP e pós doutorado em Tel Aviv, Felipe Pondé, vai adiante ao analisar (em suas notas) o niilismo na atualidade, o que é muito bom, uma vez que a literatura sobre esse tema na atualidade é escassa. Vivemos, majoritariamente, no mundo capitalista e a medida em que esse sistema vai se sofisticando ele vai moldando a sociedade e a nossa vida interior (Kierkegaard). Ou seja, analisa Pondé, "apêndice sem autonomia e sem substância própria" arrastado pela vida como consumo. Um nada de subjetividade ou como conceituou Theodor Adorno - o marxista mais negativo, carrega a pecha de niilista por causa do seu olhar duro sobre a devastação da subjetividade a partir da aceleração do capitalismo, principalmente na sua forma de consumo (a morte da subjetividade)".
Pondé destaca - mais adiante nas notas sobre o marketing como prática niilista - que "o marketing é o niilismo em movimento, por meio de métricas cada vez mais precisas. Se há alguns anos dizíamos que um bom profissional de marketing era aquele que sabia o que você ia querer dali a dois anos, esse profissional já assumiu, com seu parceiro artificial inteligente, a capacidade de forma seu desejo de modo prévio". É o que estamos vendo, na atualidade, o esvaziamento da subjetividade pelo marketing digital com nosso consentimento.
Por fim, para não nos alongarmos no comentário - é preferível que os leitores leiam o livro e tirem suas próprias conclusões - Pondé em - notas do niilismo e as redes sociais - diz que "o ruído das redes sociais enche o mundo de nada". Perfeito. E mais: "A desarticulação da vida privada, da vida política, da vida profissional, da vida afetiva - todos devem se humilhar fazendo produto de marketing digital".
Como então enfrentar o "nada" ou mesmo abraçá-lo? Cita a receita do filósofo francês Albert Camus e as quatro formas do enfrentamento - a depressão, viver é um trabalho de Sísifo, o homem revoltado, a esperança. Fato concreto, "lembremos que esse nada, tal como tratamos aqui, não é um abstrato, é um fato concreto produto de vínculos sociais, processos históricos, fraturas existenciais, arranjos políticos. O nada, como dissemos antes, é o nada da esperança, de fundamento da moral, de vínculos, enfim, de sentido (telos)".
Livro que já adotei como de cabeceira, do meu sofá das letras.
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