Literatura
Rosa de Lima
21/10/2022 às
12:13
ROSA DE LIMA COMENTA À SOMBRA DAS MOÇAS EM FLOR, DE MARCEL PROUST
Pessoas que não conseguem identificar o canto dos pássaros terão dificuldades em comprrender esse livro
O escritor francês Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust morreu em 1922, aos 51 anos de idade, na mesma cidade em que nasceu no final do século XIX (1871), em Paris. Filho de renomado professor de medicina - Adrien Proust - o que lhe garantiu frequentar os salões da alta sociedade francesa, sua obra está contida em "À la Recherche du Temps Perdu" (Em Busca do Tempo Perdido) editado no Brasil pela Nova Fronteira em três imensos volumes, cada um deles contendo dois a três livros - em média com 750 páginas - em que retrata a sociedade francesa a partir do início do século XX até quando morreu.
Já comentamos neste espaço o primeiro volume intitulado "No Caminho de Swann" em que aborda o período de sua infância, a família, os prados do Champs Élysée (ele nasceu na comunidade de Auteuil na região da Île-de-France) as suas babás, mordomo e o seio da família; e agora vamos falar do segundo volume "À sombra das Moças em Flor" que é considerado o mais lírico de todo conjunto de sua obra (só publicou essa coletânea e o último volume foi editado em 1927 quando já tinha morrido há cinco anos).
Quando Proust nasceu em Auteuil-Neuilly-Passy (o setor sul do então rústico 16.º arrondissement de Paris), a cidade já estava dividida em distritos e com os boulevards criados a mando de Napoleão III pelo Barão Georges-Eugène Haussmann. Viveu, na infância o período da consolidação da Terceira República Francesa, e parte do que deixou para a posteridade são observações do declínio da aristocracia e a ascensão das classes médias que ocorreram na França durante a Terceira República e o “fin de siècle”.
A Terceira República Francesa foi o regime republicano que vigorou na França entre 1870 e 1940, tendo sido o primeiro regime durável a se estabelecer no país desde a revolução de 1789. De fato, a partir da Revolução Francesa e ao longo de aproximadamente 80 anos, os franceses seriam submetidos a sete regimes diferentes: três monarquias constitucionais (sob as constituições de 1791, de 1814, e de 1830), duas repúblicas efêmeras (a primeira, entre 1792 e 1804, e a segunda, de 1848 a 1852) e dois impérios (o primeiro, de 1804 a 1814, e o segundo, de 1852 a 1870).
Proust, portanto, viveu exatamente no período de estabilidade da Terceira República, entre 1871/1922, e traçou um perfil do emaranhado da alta sociedade francesa pontilhada de barões, duques, marqueses, cortesãs, e todo uma mudança para uma sociedade civil diferenciada (a classe média), os novos hábitos, e as transformações que estavam ocorrendo com as novas tecnologias na construção civil, na indústria, na moda, no transporte, e são dessa época o advento do transporte ferroviário, da Torre Eiffel, das lojas de departamentos e outros.
A mãe de Proust, Jeanne Clémence Weil, filha de uma rica e culta família judia da Alsácia, temia as andanças do no Champs Élysée, diante de possíveis malfeitores e o autor conta isso nos "Caminhos de Swann". As lembranças da casa do seu tio-avô em Auteuil, tornaram-se o modelo para a cidade fictícia de Combray, onde algumas das cenas mais importantes de Em Busca do Tempo Perdido têm lugar. (Illiers foi renomeada para Illiers-Combray por ocasião das comemorações do centenário de Proust).
O poeta, tradutor e crítico Fernando Py responsável pela tradução do "Em Busca do Tempo Perdido" diz que o segundo volume de sua obra "À Sombra das Moças em Flor" talvez seja "o mais lírico dos seus livros". Py destaca que "a leitura do texto, entretanto, permanece no mesmo nível de complexidade de análise psicológica, com seu estilo caudaloso de movimento em espiral compósita, suas longas frases e períodos de enorme extensão, construídos, todavia com grande vigor".
Isso é perfeitamente notado nos textos, uma vez que, embora haja um encaminhamento único para o enredo, o autor se utiliza de muitos detalhes, de diálogos bem colocados e sutis, o que exige de quem está lendo a obra uma atenção redobrada e minuciosa, além de ter muita paciência. Não é desses livros que se lê numa sentada ou que atraia a atenção do leitor para que se conclua de imediato, atraído pelo suspense ou por uma narrativa emocionante. Nada disso.
Pelo contrário, chega a ser maçante aos olhos da maioria, pois o autor em nenhum momento tem pressa em concluir a narrativa e vai colocando as frases de maneira despretensiosa como se fosse uma conversa do dia-a-dia, uma fala entre amigos e familiares, coisa comezinhas como a visita a um atelier de um pinto, a observação a um grupo de moças que caminha nas proximidades de uma praia no Balnerário de Balbec, detalhes do atendimento do hotel onde se hospedava com a avó, hábitos e costumes da vovó, enfim, uma narrativa - como bem disse Py - extremamente lírica.
Agora, quem aprecia a literatura refinada, pontos de vista bem sutil sobre as pessoas - lembrando que nesse período a psicologia estava engatinhando como ciência - gestos, olhares, comportamentos, sexualidade, vícios, costumes, etc - é um primor.
Um trechinho que não deve ser entendido de forma isolada, mas somente para o leitor sentir o refinamento e a cultura do autor ao falar da saída de um concerto em que saíra em Balbec: "Convencido de que as peças que ouvira (p prelúdio de Lohengrin, a abertura de Tamnhäuser etc) exprimiam as mais altas verdades, tratei de me por à altura delas e, para melhor compreendê-las, extraía do meu espírito o que nele houvesse de melhor e mais profundo, e as elas o entregava".
O refinamento em Proust é uma marca "num bosque, o amador de pássaros distingue logo esse chilrear privativo de cada ave, que o vulgo confunde". Assim são os livros de Proust. Não são textos para amadores, apressados, pessoas que não conseguem identificar o canto dos pássaros.
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