Literatura
Rosa de Lima
23/04/2022 às
12:01
ROSA DE LIMA COMENTA LIVRO DE JOSÉ SARAMAGO "VIAGEM A PORTUGAL"
Narrativa sobre viagem do autor pelo interior de Portugal, Alentejo e Trás-os-Montes
Já comentamos noutros escritos sobre a força e a delicadeza da pena de José Saramago, o escritor português falecido em 2010, e sua capacidade de manusear as palavras da língua portuguesa como poucos o fizeram. Entende-se perfeitamente o que ele escreveu em seus inúmeros livros? Sem dúvida. Mas, é preciso um pouco de atenção em suas frases especialmente os brasileiros que usam uma linguagem mais direta para dizer as coisas. Não que Saramago seja o avesso do avesso, um Guimarães Rosa enigmático com suas interpretações do mundo caipira das Gerais, mas, é preciso ter atenção no que ele nos legou na literatura.
"O viajante vai ao vinho, que é outra e não menor fama da terra, compra umas garrafas, e tendo assim suprido apetites futuros vai dar uma volta ao passado apreciando a fachada da Capela da Misericórdia, que é como um retábulo de altar trazido para a luz do dia", cita num dos trechos do seu livro "Viagem à Portugal (Companhia das Letras, 461 pág, R$40,00, 4ª edição, 2021), uma preciosidade narrando uma viagem que fez ao interior do país onde nasceu, ao Alentejo, entre o Algarve Traz-os-Montes, encerrando ou começando em Lisboa, com sua visão crítica e fino faro nos comentários à cultura religiosa portuguesa, citações a escritor, escultores, artistas de uma forma geral, gente do povo e gente da Corte.
Se o leitor não conhece Portugal em seus detalhes, a cultura portuguesa religiosa católica, as paisagens e o saber do povo, ao ler a narrativa de Saramago por seu país de origem - em meados dos anos 1990 se mudou para Tias, Espanha, onde faleceu com sua amada espanhola, em 2010, de leucemia - se apaixonará ou, ao menos, terá vontade de um dia fazer idêntica peregrinação. Para Saramago teria sido mais fácil uma vez que nasceu no interior de Portugal e conhecia as senhoras e senhores dos vilarejos vivem e se comunicam com os visitantes. Aparentemente é fácil, mas não é. A relação entre um português e outro português é bem diferente entre um português da aldeia e um estrangeiro. E, Saramago, por ser nativo, consegue penetrar nessa alma portuguesa e ir narrando os inúmeros encontros que teve com os 'homens das chaves' que abriam os conventos e igrejas para ele visitar.
Ao chegar em Belmonte, a terra de Pedro Álvares Cabral, assim comentou: "Belmonte é a terra de Pedro Álvares Cabral, aquele que em 1500 chegou ao Brasil e cujo retrato, em medalhão, se diz estar no claustro dos Jerónimos. Estará ou não, que nisto de retratos de barba e elmo não há muito que fiar, mas aqui no Castelo de Belmonte deve ter Pedro Álvares Cabral brincado e aprendido suas primeiras habilidades de homem, pois neste lugar estão as ruinas do solar que foi de seu pai, Fernão Cabral. Não deve ter tido má vida Pedro Álvares Cabral a julgar pelo que resta, o solar era magnífico".
Que outro, então, a falar de Cabral, dessa maneira? Estamos acostumados a vê-lo com um austero navegador que achou o novo mundo do Brasil empurrado pelos ventos na sua viagem de encomenda à India. Saramago, no entanto, dá-lhe vida normal, de um fidalgo, bem possuído e morador de um castelo
Ao chegar as terras baixas portuguesas, vizinhas do mar, o autor diz: "O viajante vai ao caminho do Sul. Atravessou o Douro em Vila Nova de Gaia, entra em terras que a bem dizer são diferentes, mas desta vez não lançou aos peixes uma nova peça do seu sermonário. De tão alta ponte não ouviriam, sem contar que esses peixes são da cidade, não se rendem a sermões". Troça, pois, com o dito milagre dos peixes de Santo Antônio quando o milagreiro de Lisboa e Pádua teria feito um sermão aos peixes e estes o ouviram com atenção.
O livro é, pois, repleto dessas tiradas, de comentários os mais sutis e ferinos sobre a cultura religiosa católica portuguesa e sobre a vida do povo em povoados e vilarejos.
"Para Tentúgal -diz - não tem nada que errar. É ir a direito pela estrada de Coimbra, há um desvio, está logo lá. Não faltam em Portugal povoações que parecem ter ficado à margem do tempo, assistindo ao passar dos anos sem mover uma pedra daqui para ali, e, contudo,sentimo-las vivas de vida interior, quentes, ouve-se bater um coração. Ou está o viajante cometendo grave injustiça, ou não é esse o caso de Tentúgal".
Vê-se, pois, que Saramago é crítico também consigo mesmo e não escreveu um livro como se fosse um roteiro para viajantes à Portugal, mas um relato intimista de sua visão sobre o seu país, desde os monumentos até o comportamento das pessoas das comunidades, da forma de viver do seu povo. Quem quiser entender "Viagem à Portugal" como um roteiro a ser seguido, tudo bem, é uma boa opção; mas, é preciso entender a visão crítica de Saramago exposta em cada fras como sendo dele, pessoal, e que poderá (ou não) ser aceita pelos futuros viajantes.
Há, óbvio, aqueles que discordam de muita coisa que está posta nos seus escritos, porém, nada que invalide suas opiniões. Cada qual que interprete ao seu modo e/ou semelhança a que ele interpretou.
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