Literatura
Rosa de Lima
11/03/2021 às
15:44
ROSA DE LIMA COMENTA SANTIAGO DE COMPOSTELA UM CAMINHO DE VIDA
Um relato diferenciado de quem fez boa parte do caminho de carro, mas concentrado na fé, nas mudanças de vida
Já comentamos neste BJÁ sobre vários relatos dos caminhos de Santiago por autores brasileiros e estrangeiros. Muitos são esses roteiros na Europa para Santiago de Compostela, na Galícia, na própria Espanha, outros partindo da França, da Itália, da Inglaterra, da Alemanha, da Belgica e de Portugal. O relato mais famoso é o de Paulo Coelho (O Diário de um mago) que mistura ficção com a realidade, ele que fez o caminho na década de 1980.
Alguns autores fizeram os caminhos todos a pé e outros parte a pé e parte motorizada diante das dificuldades que é, por exemplo, percorrer o caminho tradicional entre os pirineus franceses (Saint-Jean-Pied-de-Port) até Santiago passando pelas regiões autônomas do Norte da Espanha - Navarra, Leon, Castela, Galiza - um percurso de 800 km. Paulo Coelho, por exemplo, andou até o Cebreiro e depois fez o restante do percurso de carro.
O empresário gaúcho residente em São Paulo, Marcelo Prauchner Duarte, publicou em 2015 o livro "Santiago de Compostela - um caminho de vida" (Editora do Autor, 145 páginas, à venda pela internet) um relato bem interessante, pois, ao contrário da maioria dos autores fez a quase totalidade do caminho de carro, num Smart, sozinho, cumprindo apenas pouco mais de 100 km a pé dos 800 entre Roncessalles e Santiago, justo o exigido pela Ordem de Santiago para receber o certificado da compostela.
Não deixa de ser interessante, até porque isso não diminui a fé do peregrino e apenas permite que a tecnologia do automóvel ajude nessa operação, ele que também optou por não ficar nos albergues dos religiosos e das alcadias, preferindo os hotéis.
Creio que essa atitude perde o sentido maior de fazer o caminho nas relações com outros peregrinos de várias partes do mundo. Esses albergues representam, em certo sentido, o original de percorrer a direção da Via Láctea da Compostela desde o século IX e é onde os peregrinos se encontram, dialogam, fazem amizades e há o prazer da coletividade, de dividir espaços com pessoas que você não conhece, da troca de ideias, de experiências, do cultivo de novas amizades.
Mas, é óbvio que cada cabeça é um mundo e Duarte adotou essa lógia do uso do automóvel e considerou que sua jornada deu-se de forma "meditativa e produtiva". Era um sonho que tinha de fazer o caminho e concretizou-se quando ele estaria no limite do esgotamento de suas forças produtivas no trabalho e precisava dar um templo, parar, refletir, deixar de lado a correria por um momento e dedicar-se a rever conceitos pessoais para melhorar sua autoestima e felicidade. Diz que conseguiu.
O curioso, de fato, é que Duarte modificou até mesmo o roteiro original que tinha pensado e programado, partiu de SP para Madrid, depois para Leon e desta cidade alugou um carro e retornou a Astorga, mais de 600 km, para fazer o caminho praticamente ao contrário, indo daí a histórica Roncesvalles, onde o exército de Carlos Magno sofreu uma grande derrota para os bascos (os vascões) e é, depois de Saint-Jean-Pied-de-Port (nos pirineus da França) o inicio do roteiro do camiho frances a Compostela, aquele que teria sido feito pelo apóstolo Tiago, por São Francisco de Assis e por Santa Isabel de Portugal, entre milhares de outros cristãos.
Veja o que diz Duarte sobre o primeiro dia da peregrinação: "No hotel estava inquieto, agitado e muito ansioso. Eu não sabia o que estava ocorrendo, então aproveitei o momento para rezar bastante e falar com Deus. Desta forma, fui me acalmando, obtendo paz e tranquilidade interna. Isso me fez entender o quanto, em muitos momentos da vida, tenho sido egoista, me isolado daqueles que amo, sendo superficial e não ajudado as pessoas. Compreendi ter o dever de estabelecer uma missão de me doar um pouco mais aos outros como forma de gratidão por tudo que tenho, ajudando o próximo a se desenvolver e conquistar a sua felicidade".
Revela-se no enunciado das palavras do autor, o seu sentimento interior e isso demonstra que, embora ele tenha feito o caminho com maior tempo do percurso num veiculo, não lhe tirou o foco da missão a ser alcançada.
"Queremos uma vida simples, e muitas vezes, não olhamos para o semelhante ao nosso lado. A nossa existência é baseada em valores financeiros, pois sem ele não conseguimos acolher o nosso frio, alimentar a nossa fome, saciar nossa sede, resgaurdar os nossos medos. Quantas vezes esquecemos das pessoas acuadas e necessitadas ao nosso redor? Quantas vezes deixamos de agradecer tudo aquilo que temos? Como discernir entre as pessoas boas e as más, que estão a nossa volta?, foi a reflexão inicial de Duarte.
É claro que o caminho percorrido por Duarte por ter sido feito uma grande parte de automóvel, embora ele tenha passado pela maioria das localidades espanholas, as pinceladas históricas e as vivências desses locais e de sua gente são rarefeitas, menores do que daqueles que fazem todo o trajeto a pé, às vezes por 40 a 60 dias, e detalha esses aspectos culturais com maior intensidade.
O livro de Duarte, no entanto, é apreciável - até porque muitos peregrinos chamados de 'turigrinos' adotam esse estilo - e ele, ao que revela no livro, se concentrou, tanto que, após 3 dias de peregrinação "já estava muito mais relaxado, as dores passaram e os pensamentos vinha apenas quando eu os desejava. A minha mente estava fluindo melhor, pois me permitir apenas observar e viver o momento, sem julgamentos e obrigações".
No final da jornada, em Santiago de Compostela, confessa ao assistir a missa dos peregrinos que suas lágrimas escorriam pelo rosto "estava com uma alegria interior imensa, uma paz, uma emoção e uma felicidade muito grande".
É isso, cada pessoa escolhe a sua maneira de fazer o Caminho de Santiago e Marcelo Prauchner Duarte dá-nos seu depoimento e uma lição de que é possível aliar as duas coisas - a fé e a tecnologia - com o objetivo comum de poder falar com Deus.
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