As carroças, dezenas, seguiam em cortejo decoradas com palhas de coqueiro, arcos de pindoba, galhos, folhas de pitanga, plantas de descarrego, flores ... e uma gente de branco trepada nelas. Carroças puxadas por burros, mulas e jegues enfeitados da cabeça aos pés, crinas penteadas, rabos em tranças, pose de festa. Era assim.
Baianas de verdade, vinculadas a terreiros e com adereços das entidades. A água de cheiro das quartinhas era sagrada, vinha de rituais, trazia o Axé do Orixá do pano branco, os encantos ocultos do povo de santo da Bahia. Era assim.
Dona Hermínia acordava antes do albor para cumprir suas obrigações e bem cedinho já estava toda pronta para a caminhada, com seu chinelo rasteiro, saia rodada, anáguas, bata bordada, torço, braceletes, anéis, colares de contas, balangandãs, toda chique como só se via em dia de Bomfim. Só mesmo em dia de festa para o senhor nosso pai, a Lavagem do Bomfim, assim se dizia, e era esse o costume que vinha desde os antepassados. Pra Ele tudo !
Comadre Hermínia era uma negra velha de rosto redondo, dentes alvos, seios e bunda enormes, serena, de pouca conversa. Morava numa casinha humilde vizinha à nossa, numa avenida/beco sem saída da Baixa do Cacau, a metros da linha do trem, rua Voluntários da Pátria, subúrbio de Salvador, berço de minha infância.
Dali ela saía arrastando os pés gordos, branco absoluto, algumas rosas na quartinha, toda compenetrada, caminhando até os Fiaes, a Baixa do Fiscal, passando pelas imediações da Feira do Curtume, pegando a rua do Imperador (onde nasci), chegando ao largo da Igreja dos Mares e daí rumando direto até a Sagrada Colina do Bomfim, onde, já subida as escadarias e ao lado de outras baianas conhecidas irmãs de crença derramava às portas do templo a água de seu potinho, cumprindo seu preceito como como aprendera desde criança. Fazia suas rezas, seus pedidos e muito agradecia por estar viva, com saúde, e por ter o de comer de cada dia na mesa, vivendo assim à espera de seu bom fim na hora que Olorum achasse por bem.
Via ela chegar de volta, arrastando-se ainda mais lenta de cansaço pela longa caminhada, o sol ainda alumiando forte, antes do entardecer. No rosto só felicidade, sem risos, o fazer bem feito, obrigação cumprida.
- A bença, Dona Hermínia!
- Deus lhe abençoe, meu filho”.
A vizinhança toda gostava dela, a Velha Hermínia, uma criatura do bem, ente de paz.
Ainda hoje, sempre às quintas-feiras da Lavagem do Bomfim lembro-me dela, formosa como um desenho de Carybé, uma foto de Verger. Imagens, cenas dos anos 50/60, outros tempos, outros costumes, baianidades... Era assim.
Tempos das carroças, dos jegues enfeitados no capricho, muita gente caminhando descalça, o branco total obrigatório, o devoto a pagar suas promessas, toda contrição e fé na caminhada, a chegada glorificada.
Cair na festança só depois de cantar o Hino do Senhor do Bomfim lá no alto da colina, as lágrimas escorrendo misturadas ao suor do rosto. Então, vamos molhar a garganta, todos ao furdunço, bater com os amigos, comer aquela feijoada de graça, cair na paquera e no samba de roda até as pernas aguentarem...
O domingo do Bomfim, no depois de amanhã, é da Igreja, a festa da Irmandade centenária, com missa e procissão, benção do crucificado e água benta, o cheiro das angélicas que ornamentam o altar-mor misturando-se ao do incenso litúrgico e quase sufocando, em vertigens consagradas. E as lembranças das pregações do padre Sadock, os fiéis atentos e emocionados com o sermão do orador sacro, a beber cada palavra, tão bonita como o dourado da igreja.
Era assim.
E viva o Senhor Bom Jesus do Bomfim. Êpa Babá, meu pai.
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PS: Sei que o mais correto é BONFIM, mas gosto mais do BOMFIM.
https://bahiaja.com.br/artigo/2017/01/15/era-assim-minha-gente-ecos-do-bomfim,971,0.html