03/06/2016 às 19:55
ESTUDO DE CASO DO ESTUPRO COLETIVO
Luciana Santos Silva é advogada, professora do Curso de Direito da UESB/BA. Doutora pela PUC-SP. Vencedora do V Prêmio Construído da Igualdade de Gênero
A violência contra a mulher decorre do patriarcalismo arraigado em nossa sociedade. Essa cultura patriarcal, de
profundas raízes históricas, é pautada na inferiorização e reificação do feminino servindo para naturalizar e justificar todas as espécies de violência contra a mulher. O estupro coletivo ocorrido na cidade do Rio de Janeiro é mais
um triste exemplo da cristalização dessa cultura que faz cotidianamente vítimas no Brasil[1).
Vivemos em um país que para diminuir ou menosprezar um homem basta compará-lo a uma mulher, isso denota quão elevada é a misoginia nacional. Destarte, o aviltamento do feminino, consubstanciado nas diversas formas de
violência, faz com que ações criminosas sejam naturalizadas e tidas como comportamento aceito socialmente.
Neste sentido, a filmagem do estupro coletivo e sua divulgação sinaliza que esse ato hediondo não foi percebido como violência ou crime, ao revés, foi tido como trunfo e afirmação de virilidade e macheza. O acusado de filmar e
divulgar o ato do estupro coletivo ao sair da delegacia, em meio a gestos e risos que mais pareciam comemoração da vitória de um time de futebol do que a saída de uma oitiva policial , afirmou que “estava mais famoso que a Dilma” . Mais uma vez parece que o ato deve ser vangloriado!
Na narrativa da adolescente o riso dos garotos também sinaliza para a naturalização da violência contra a mulher, seguem suas palavras:
“Acordei em um lugar totalmente diferente, com um homem embaixo de mim, outro em cima e dois me segurando, muitos garotos rindo, eu estava dopada (…)” (Entrevista dia 29.05.2016, TV Record, Domingo Espetacular).
A vítima, por outro lado, diz que se sentiu incriminada e desrespeitada na delegacia em que foi ouvida:
“Eles me culparam por uma coisa que eu não fiz, perguntaram o que eu estava fazendo, se eu tinha
feito sexo grupal, querendo me colocar de culpada de todas as formas” ( Entrevista dia 29.05.2016, TV Record, Domingo Espetacular).
Essas condutas de culpabilização da vítima, tão comum nos casos de violência contra a mulher, traduzem um sistema penal autoritário. Nestes casos a investigação policial e o processo penal se restringem a atuar
apenas como meio de aplicação da norma criminal, olvidando que a vítima é sujeito de direitos que devem ser concretizados pelo Estado na persecução penal.
Cada crime tem suas peculiaridades as quais devem ser observadas para garantir que a vítima não seja alçada à condição de objeto, seja na investigação e/ou no processo. Nos casos de estupro, em atenção às referidas
peculiaridades, é inconcebível, por exemplo, que a perícia da mulher violentada seja feita por homens. No caso em analise a vítima trouxe uma séria violação da sua condição de mulher e adolescente, senão vejamos:
“Começando por ele, tinha três homens dentro de uma sala. A sala era de vidro, todo mundo que
passava via. Ele colocou na mesa as fotos e o vídeo. Expôs e falou: ‘me conta aí’. Só falou isso. Não me perguntou se eu estava bem, se eu tinha proteção, como eu estava. Só falou: ‘me conta aí’” (Entrevista dia 29.05.2016, TV Globo, Fantástico).
A culpabilização de quem sofreu um estupro promove o desvio de finalidade estatal, uma vez que os órgãos de persecução penal que deveriam evitar a vitimização passam a perpetrá-la. Na questão da violência contra a mulher, além desse, outro desvio de finalidade pode ser notado. A Constituição Federal, em seu art. 3º, inciso IV, determina como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos sem preconceito de sexo.
Destarte, a culpabilização da vítima por agentes estatais viola a dignidade humana e, em uma acepção mais ampla, se contrapõe aos objetivos do Estado Democrático de Direito traçados na Carta Maior.
Além desse vitimização secundária, entendida como agudizamento do sofrimento da vítima por meio da atuação do ius puniendi estatal, há também a culpabilização social. Quanto à este aspecto a adolescente do caso ora analisado, mais uma vez, recebe nova carga de culpabilização, conforme ela descreve:
“Eu fico um pouco [revoltada], porque tem pessoas que estão defendendo [a violência que sofreu], afirmando que eu estou mentindo, dizendo que a minha versão da história é mentirosa. Sendo que tem um vídeo para provar que eu estava desacordada no momento, nua e eles mexeram em mim. Tem fotos. No vídeo eles falando quantas pessoas tinham” (…)
“Ninguém merece isso. Não interessa se eu estava com roupas curtas, com roupas longas. Não interessa como eu estava, no lugar que eu estava, na hora que eu estava. Estão fazendo áudios meus, montagens com a minha foto, fotos que não são minhas, vídeos que não são meus onde eu estaria nua, armada. Tem áudio onde eu estaria falando ‘ah! Eu tô muito louca’, sendo que não sou eu.” (…)
“Muitas pessoas falam que é mentira, como se elas estivessem lá, inclusive mulheres. Dizendo que eu procurei, que eu estava lá porque ia. Ninguém pensa: ‘poderia ser comigo’ ” (…) (Entrevista dia 29.05.2016, TV Globo, Fantástico).
A violência institucional e social que a adolescente vem sofrendo, por meio da sua culpabilização, demonstra um dos motivos por que muitas vítimas se calam diante dos inúmeros crimes que sofrem apenas pela condição de serem
mulheres. A culpabilização gera o silenciamento feminino, a subnotificação, a impunidade e favorece a perpetuação dessa famigerada espécie de violência.
Pior que o silenciamento é quando a cultura patriarcal faz mulheres e meninas se sentirem culpadas ou não perceberem a situação de violência. Ainda persiste o ideário social, por exemplo, de que a mulher deve
satisfazer os desejos masculinos, inclusive os sexuais. Por isso situações de violação da dignidade sexual da mulher são, por vezes, naturalizadas. Essa situação se torna mais gravosa quando isso ocorre no seio de entidades que
deveriam acolher e empoderar a mulher em situação de violência.
A culpabilização da vítima em casos como o ora analisado é, simultaneamente, um sintoma da sociedade patriarcal e um mecanismo que reforça seus valores, fazendo com que o mesmo se remodele e se perpetue ao longo dos
tempos.
NOTAS
[1] No Brasil 38,72% das mulheres em situação de violência sofrem
agressões diariamente; para 33,86%, a agressão é semanal (Balanço dos
atendimentos realizados de janeiro a outubro de 2015 pela Central de
Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República (SPM-PR). Estima-se que Estimamos a cada ano, no
mínimo, 527 mil pessoas são estupradas no Brasil, 89% das vítimas são do sexo
feminino, possuem em geral baixa escolaridade, sendo que as crianças e
adolescentes representam mais de 70% das vítimas (Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde).
https://bahiaja.com.br/artigo/2016/06/03/estudo-de-caso-do-estupro-coletivo,934,0.html