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11/05/2015 às 11:27

Direito, Epistemologia e Racismo*

A produção do conhecimento no âmbito das universidades brasileiras tem que se alimentar dos saberes que
forma civilizatoriamente a sociedade que a promove

Sérgio São Bernardo

 Se pensarmos o direito como uma linguagem aberta e entendermos que essa é uma área da ação humana anterior aos estudos da norma, da justiça e sua conformação como ciência, podemos iniciar um
debate sobre o racismo e a epistemologia no direito. 

    O Direito é da ordem da existência humana e dela não podemos prescindir. Se colocarmos o Direito numa perspectiva multidimensional, transdisciplinar e numa linguagem aberta, teremos um tipo de
saber humano, a partir de um lugar que pensa o todo num horizonte sempre contextualizado e valorativo. É sempre um discurso moral, que ao moralizar os “outros” em alteridade, funda uma ética que institui o Direito. 

    Kant quis destruir Deus e colocou a moral no lugar. Aristóteles coloca a comunidade como definidora da
justiça e do direito e a moderna ciência a coloca, a norma jurídica, ora numa linguagem  matematizada, ora numa linguagem argumentativa. 

    Esse é o desiderato das epistemologias eurocêntricas modernas. Utiliza-se de um pragmatismo universal para substituir dogmas e práticas tradicionais, mas sempre volta a ela com marcante
energia e reacionarismo. A epistemologia da pragmática universal parece se apresentar como a única capaz de entender e assimilar os “outros”. 

    O Direito não pode ser apenas uma parafernália a serviço do poder instituído e da afirmação
de uma verdade monolítica, traduzível apenas em um par de linguagens e etnias. Por isso temos que seguir uma linha oposta e nos desincumbirmos dessa tradição epistemológica. O saber dos “outros”, das Américas, da Ásia e da África, tem que fazer parte da agenda da Universidade em processo de multidiversidade. 

    O saber que alimenta a produção do Direito e dos princípios de justiça decorre do acontecimento humano em ação, em desejo, em vontade. Uma pragma que pode habitar a física e a metafísica
universalizante. Por isso, a metafisica ancestralizada na América, na Ásia e na África está ainda a fazer micro "revoluções" na afirmação identitária e emancipatória. O sentido da fé torna-se um estatuto tão poderoso quanto o estatuto da ciência.

    Observe-se que para os estudos e pesquisas jurídicas, vamos nos debater com essa mesma metodologia de se "montar" um discurso linguístico cientificizado, com fundamentos metafísicos isentos e neutros, como fez Kelsen ao elaborar a “Teoria Pura do Direito” e erigir o edifício da teoria da norma e regras legais no chão de uma abstrata "norma fundamental".  

    No caminho para agir com e sobre uma metodologia de conhecimento de fronteira, precisamos tomar posição política sobre o sistema-mundo. Esta metodologia só se constituirá numa resposta transmoderna e descolonial se não caminharmos pelas sendas do monólogo e do fundamentalismo. Fica o desafio de pensarmos e agirmos numa nova perspectiva cosmopolita, crítica ou, como nos ensina Mignolo (2000), numa “diversalidade".
  
    Ressalte-se que o debate sobre a colonialidade se inscreve num repertório de superação 
epistemológica, que, como bem diz Mignolo, nos inspira á necessidade de praticarmos uma “desobediência epistêmica” e combatermos as supostas armas do colonizador com suas próprias bases teóricas e dogmáticas, afirmando outras identidades sustentadas numa nova base epistemológica.

    Ramón Grasfoguel (2005), enfatiza esse aspecto que saiu das colendas entre os "Estudos Subalternos" e da crítica Decolonial, onde a necessidade de desconstruir a historiografia colonial e etnocêntrica teria que ser acompanhada de uma historiografia nacionalista e tradicional. Estudar os pós-modernos, mesmo em perspectiva emancipatória, não nos desprende dos pressupostos etnocêntricos desses autores. 

   Ramón Grasfoguel[2] insiste na necessidade de desenvolver uma epistemologia de fronteira ("na encruzilhada"?) onde a premissa monológica, monotópica e totalizadora das tradições nacionais e
internacionais, tanto do centro quanto da periferia são tematizadas e confrontadas para além de suas propostas ideológicas. Mais uma vez, Grasfoguel: "trata-se de uma perspectiva que é crítica em relação ao nacionalismo, ao colonialismo e aos fundamentalismos, quer eurocêntricos, quer do terceiro
mundo". Mesmo que essa nova epistemologia ainda se estruture através dos pressupostos do pós-modernismo e do pós-estruturalismos teremos uma dívida com a carga de desigualdade sócio-racial que dela se desprende impedindo o alcance de sociedades mais equitativas e justas. 

    Daí a necessidade de se distinguir o "lugar epistêmico" do "lugar social". O autor nos convida
para o conhecimento de fronteira utilizando a categoria da "diferença colonial" a partir de uma epistemologia própria. Esse propósito nos prepararia ao enfrentamento das premissas de muitas epistemologias modernas e sua consequente desmitificação da perspectiva do "ponto zero", típica
das filosofias eurocêntricas. 

    A política identitária tem tido um papel preponderante na luta por igualdade e justiça nas Américas. Diversos estudos consideram-na, inclusive, como um ponto de partida epistemológico. Esse lugar epistemológico e epistêmico tem nos levado mais fundo nos debates ideologizados de colonização europeia e exploração capitalista. 

   O que nos orienta a não estudar por um método que não pode ser fixo e nem linear. Não pode apontar para uma única direção. Essa postura na elaboração de uma pesquisa sobre iniquidades humanas deve se referir à luta identitária como mais um lugar apenas e não o único na luta mais geral por igualdade e justiça. Isso se dá porque esse instrumento de ação social não deve prescindir de se confrontar com a matriz etnocêntrica e colonial, sob pena de, assim, acabar por se transformar naquilo no
que, por princípio, nega. A imposição da premissa dos terceiros incluídos[3] convida a que todos os “terceiros incluídos” se articulem numa luta mais vasta e global contra o sistema-mundo capitalista. O terceiro incluído se constitui na afirmação à negação dos princípios aristotélicos de que A é A (identidade) e de que A não pode ser A e B ao mesmo tempo (não-contradição). O que vale dizer que C pode ser o resultado de A e B.  

    Quando associamos os valores e conceitos típicos de um repertório subsaariano revitalizados na diáspora, (restituição, comunhão, integração, unidade, imanência, comunidade, corporeidade, ancestralidade etc., com os ideais de uma filosofia europeia hegemônica e predominante no Brasil (que
valoriza um hibridismo ocidentalizante com forte influência cartesiana, iluminista e logocêntrica, fundidas com o culturalismo romântico dos trópicos), acercamo-nos de que não sabemos fazer, e não fazemos, tais distinções em nossas ações cotidianas sobre essa ou aquela matriz a que chamamos multicultural, mas, ao fim e ao cabo, reveste-se de uma matiz uniformizante e autoritária.

    Uma proposta epistemológica que se pretenda multicultural e multi-étinica tem, obrigatoriamente,
que colocar Ratzinger em confronto com Habermas; Dussel, em confronto com Apel; os físicos em confronto com os metafísicos; os rabinos e católicos, em confronto com os cosmogônicos e imanentistas; as encanterias, em confronto com os búdicos e Exu em confronto com todos os deuses e deusas. Nada prova nada em absoluto. Nada nega nada em absoluto. E se epistemologia é a conformação comunitária de um sistema de crença e opinião organizadas a partir de conceitos e compreensões comuns e aceitáveis, então, os modos de estudar e difundir o saber é pura imaginação de signos que se
intercalam e se substituem ao sabor da história, da cultura, da linguagem e do poder.    

    Uma epistemologia contemporânea que pensa em sujeitos coletivos para os colocar em bases identitárias performativas, tem que provar que não voltará ao círculo monológico em nome da
negação da própria epistemologia. Senão é repetição, não é a aventura da diferença. Não pode se tornar ideologia. O paradigma disjuntivo/reducionista não pode ser o antagonista simplório do paradigma conjuntivo. Ele tem que ser sem sempre transjuntivo, transdisciplianar e aberto. A produção do conhecimento no âmbito das universidades brasileiras tem que se alimentar dos saberes que
forma civilizatoriamente a sociedade que a promove. Uma universidade como espaço diverso de saberes tem que se alimentar das linguagens e mecanismos pedagógicos de difusão do conhecimento sempre de forma inclusiva e multicultural.

    Esta forma epistemológica tem que se habilitar a enfrentar violências institucionalizadas como a que ocorre com as práticas e rituais das instituições universitárias que restringe e viola direitos relacionados ao estudo e à participação de determinadas etnias e raças (seus saberes e linguagens) no contexto de oportunidades e condições ofertadas. Este fenômeno, normalmente chamado de racismo institucional, configura-se como um limitador da afirmação da diversidade de saberes e limitador de uma
sociedade pluralista e realizador de um direito justo.  

    Nessa seara, de uma epistemologia "na encruzilhada em linguagem aberta", poderemos nos aproximar
daquilo que negamos. Se pensarmos sempre com bases eurocêntricas aquilo que ainda não temos como nosso (e nem saberemos se o que será nosso, será tão diferente e original quanto ao que é do outro), surgirá um terceiro que desejará sua inclusão e, perfazendo a saga que fazemos hoje, reivindicará esse lugar e nós teremos que morrer ou fazermos parte desse que se nos apresenta.

REFERENCIAS

ASSANTE, Molefi k, The Afrocentricidea. Filadelfia:TempleUuniversity
Press, 1987. (segunda edição). Filadelfia:TepleUniversity Press, 1988.

APPIAH, Kwame Anthony, Na casa do meu pai: A África na filosofia da
cultura, Rio de janeiro, Contraponto, 1997. 

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho,
Rio de Janeiro, Campus, 1992.

HABERMAS, Jurgen.Teoria de laacción comunicativa I -
Racionalidad de laacción y racionalización social. Madri: Taurus, 1987b.
 
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais.
Organização Liv. Sovik; Tradução Adelaine La Guardiã Resende, Belo Horizonte:
Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. 1ª ed. - Buenos Aires: ConsejoLatinoamericano de
CienciasSociales – CLACSO, 2005. 

MIGNOLO, Walter. A Opção
Descolonial e o Significado de Identidade em Política. Tradução de: Ângela
Lopes Norte. In: Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e
identidade, nº 34, p. 287-324, 2008.

PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Tradução
de Tomaz Tadeu da Silva, Belo Horizonte: Autentica, 2000. 

SANTOS, Boaventura de Sousa:
Epistemologias do Sul. Orgs.Maria Paula Meneses, São Paulo, Editora Cortez,
2010.

[1]Doutorando do Programa de Doutorado Multidisciplinar e Multi institucional
em Difusão do Conhecimento-UFBA, Mestre em Direito Público pela Universidade de
Brasília/UNB (2007), Bacharel em Direito e advogado pela Universidade Católica
do Salvador/UCSal (1990). Atualmente é Professor Assistente da Universidade do
Estado da Bahia - UNEB / Departamento de Ciências Humanas Campus I.
[2]Grasfoguel propõe três medidas a serem observadas: 1. a de que uma
perspectiva epistêmica descolonial exige um cânone de pensamento mais amplo do
que o cânone ocidental (incluindo o cânone ocidental de esquerda); 2. Uma
perspectiva descolonial verdadeiramente universal não pode basear-se num
universal abstrato (um particular que ascende a desenho - ou desígnio -
universal global), antes teria de ser o resultado de um diálogo crítico entre
diversos projetos críticos políticos/éticos/epistêmicos, apontados a um mundo
pluriversal e não a um mundo universal; 3.a descolonização do conhecimento
exigiria levar a sério a perspectiva/ cosmologias/visões de pensadores críticos
do Sul global que pensam com e a partir de corpos e lugares
étnicos-raciais/sexuais subalternizados." (Grasfoguel in Epistemologias do
Sul, Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos
pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global,2010
p. 457)). 

[3] O terceiro incluído não pode ser visto como uma construção lógica, onde uma
coisa e seu contrário coexistem apenas ou que não possua valor “cientifico”.

 


https://bahiaja.com.br/artigo/2015/05/11/direito-epistemologia-e-racismo,841,0.html