O Preto no Branco
da Princesa Isabel
Treze de maio, aprendi no primário, é o dia da abolição da escravatura.
Foi o dia em que, nos anos de 1888, a princesa Isabel, filha do imperador Dom Pedro II, no uso de suas atribuições, assinou a Lei Áurea, decretando oficialmente o fim da escravidão negra no Brasil.
Como baiano, nascido em local de quilombo malê, na cidade baixa, sei muito bem que
negão não curte essa data, alegando que nada há a comemorar. Tudo bem, mas não se pode também apagar ou rasgar e atiçar no lixo uma página da história. Por quê?
Nem devemos esquecer a data, até mesmo para que possamos refletir sobre o que se passou naquele instante, final de século XIX, um Brasil imperial com realidade colonial, distante, muito distante do agito e da nova ordem mundial que se forjava com a revolução industrial, as descobertas de novas fontes de energia, e o alvorecer de uma era econômica de produção em massa e mercado.
A princesa Isabel não assinou a Lei Áurea só por bondade. Ela sabia que a escravidão negra chegara mesmo ao fim, só atendia a interesses de uma minoria de coronéis latifundiários apegados ao passado. Para eles, ainda, ter escravos significava poder. O Brasil era o único país da América onde havia escravidão. A pressão contra o martírio negro era imensa, interna e externamente, e havia muito interesse em jogo.
Os negros resistiram. Através da religião; fugindo e organizando quilombos; sabotando o dia-a-dia de trabalhos forçados; misturando-se e tornando-se brasileiros, mulatos, com direito a alforrias; fazendo levantes; patrocinando e partilhando de atos de rebeldia e revoltas, tipo a dos Malês, em Salvador, a Sabinada, Alfaiates ... Quando conseguiam se unir e se organizar, eles infernizavam o poderio branco.
O grito dos abolicionistas não pode ser esquecido. Os movimentos pela Independência e pela liberdade, os levantes separatistas, todos eles traziam junto o brado contra a escravidão. O movimento republicano estava acoplado ao abolicionismo pregado por Patrocínio, Castro Alves e Rui Barbosa, entre outros. A banda mais avançada do país, na segunda metade do século XIX, já cantava a nova ordem e o progresso dos iluministas europeus.
Era necessário substituir a mão-de-obra escrava por trabalhadores assalariados, mesmo imigrantes, para que o país pudesse entrar num ritmo de produção que atendesse às novas exigências do mundo, criando mercados consumidores para os produtos da era industrial. Tínhamos muito a oferecer e muitas dívidas a pagar, sobretudo aos ingleses.
O fim da escravidão era o atraso e o obscurantismo. O trem da história andava rápido.
Xô, miserê!
O problema não foi a Lei Áurea nem a caligrafia da princesa. O miserê foi o dia seguinte. Sem raízes, sem terra, sem teto, sem família, sem saber, sem educação, sem ofício, sem preparo, desunidos, sem emprego, sem eira nem beira, milhares de negros foram atiçados nas ruas, esmolés da vida, tendo como única perspectiva ... sobreviver apenas. Foi preciso lutar, de todas as formas, para se manter vivo, se possível resgatando alguma dignidade usurpada, pois nada lhes deixaram cultivar, nem lhe deram de graça.
E como foi importante a religiosidade naquele instante, o papel dos grandes terreiros de candomblé e suas mulheres, sacerdotisas e rainhas! Acolhedoras, arrebanhadoras, batalhadoras. Na Bahia, o primeiro grande acontecimento de inclusão de negros baianos no mercado de trabalho foi o surgimento da Petrobrás. Vi negros operários, petroleiros, no subúrbio do Lobato, pagando contas dos amigos em bodegas e acendendo cigarro com cédulas de seu primeiro salário, plenos de justo orgulho.
Depois vieram a UFBa, com o Centro de Estudos AfroOrientais, os blocos afro, o movimento negro, a conscientização, o orgulho de ser negro e belo. Em São Salvador da Bahia, graças a Olorum, o negro anda com o nariz pra cima, cada dia mais ciente de seus direitos e senhor de seu destino, apesar de tudo. A cidade é feliz, por isso, mesmo com tanta desigualdade ainda e tanta pobreza. Há muito a fazer, sempre.
Mais de um século daquele 13 de maio. É bom lembrar, não esquecer, não apagar. Mas é preciso olhar para a frente, construir. Chega da aflição da abolição. Foi preciso.
Hoje, as palavras e as bandeiras são outras: Aspiração, atuação, doação, educação, informação, interação, integração, inclusão, criação e reparação.
Ação, ação, ação, ação, ação. Já ! Essa é a lição.
https://bahiaja.com.br/artigo/2007/05/12/o-preto-no-branco-da-princesa-isabel,75,0.html