Gostei bastante do filme Ó Paí Ó, de Monique Gardenberg. O aspecto que mais
me chamou atenção foi a linguagem utilizada pela diretora, sem retoques, de
termos da baianidade nagô - como se diz popularmente em alguns sítios de
Salvador - desde a utilização de porras, adiante seu lado, fazer arerê,
metido à besta, vixe e a própria expressão que deu título à fita ó pai ó,
sintonizada com o enredo e posta sem excessos.
Evidente que o uso dessas expressões só se encaixarem bem porque os
personagens dão vida à esses movimentos com a estética corporal de cada um,
a paisagem do centro histórico de Salvador e os tipos humanos que são a
representação dessa área da cidade. O figurino, os cenários interno e
externo, o casario do Pelô, a baiana do acarajé, o artesão, o travesti, o
policial, o comerciante, a menina baiana do interior, os desocupados, o
traficante de drogas, etc., todos estão perfeitamente encaixados numa Bahia
de ontem; e na Bahia contemporânea.
O filme não tem essa intenção de rever aspectos da literatura amadiana, do
saudosismo da velha Bahia mundana de Balmonilson Lisboa, Jehová de Carvalho,
Antonio Balbino, Sandoval do Bandolim, Galo Cego e Sergipinho do Pelô, entre
outros.
Revela uma cidade do Salvador contemporânea, antenada com a
manifestação da sua cultura popular mais importante que é o Carnaval, mas,
também, com a vida cotidiana atual, a pobreza, a intolerância religiosa, o
gueto, a criatividade, a farra, a comunidade, ainda hoje estabelecidos nos
cortiços-casarões do Pelô, onde é possível conviver uma senhora crente
austera e um artesão da carpintaria.
Nem preciso destacar o desempenho dos atores na fita, todos eles
bem representados, até porque essa não é a minha praia. De toda sorte, ouso
dizer que Wagner Moura está exuberante no papel do traficante de drogas à
moda poderoso chefão; e Lázaro Ramos, excepcional, como são os inúmeros
Roques que ainda hoje povoam o Pelô com suas tendas de pintura, marcenaria,
vidraçaria, alfaiataria, docerias, etc. Lembrei-me bastante de Elias,
personagem vivo que produz bonecos médio gigantes para animar cenas de
comícios, peças de teatro, passeatas e até servirem de agentes promocionais
de propaganda.
Lembrei-se também de Jorginho Comancheiro, Clarindo Silva, Agnaldo
Calça Curta, do Bar Galícia de Fua, de Conceição da mal assada, de Alaíde do
Feijão, de Badá produtor da cultura popular, do ativista Bujão, de Geraldão
do Muzenza, da estilista Goya Lopes, personagens que fazem parte de Ó Paí Ó
porque são a cara do Pelô e a fita tem essa simbologia, da Salvador do
gueto, mas também da diversidade, da alegria, da malandragem, da sacanagem
simples e boa como reza o bom baianês.
A personagem que encarna a figura da baiana que um dia sonhou ir
para o exterior e depois voltou com uma mão atrás e outra abanando, porém,
sem perder a pose é de uma força extraordinária porque contemporânea nos
dias atuais diante dessa enxurrada de pretensões e desejos de ir para a fora
do Brasil, conhecer novos mundos, em especial a Europa, ainda que para isso
não se meçam sacrifícios e o ambiente da prostituição inconsciente (ou não)
seja convidativo. O diálogo desse personagem com as baianas nativas, a que
serve como garota propaganda do vendedor de antiguidades e a baiana do
acarajé situada no sopé da Ladeira do Pelô é exemplar.
A nativa orgulha-se de que estudara, se cuidava, sabia falar inglês, mas
nunca conseguira viajar de avião e ir para o exterior. A baiana atrevida,
experiente nos lençóis europeus, refuta: - Nada disso é preciso minha filha!
O que vale mesmo é seios volumosos, com silicone em fartura, e um belo par
de bundas. E depois se esmera em contar vantagens - tão comum na Bahia - de
que fez e aconteceu, que tem uma casa em Ibisa de fazer inveja e coisas do
gênero.
O roteiro do filme é até bobinho, diria uma historinha ingênua e
despretensiosa, cujo objetivo, assim à primeira vista, indicaria uma
valorização excessiva da estética corporal e dos esterótipos do baianês,
tendo como pano de fundo o Carnaval e a afirmação da negritude. O filme, a
rigor, destaca muito esse lado e homenageia o Bando de Teatro Olodum e o
diretor da peça Ó Paí Ó, Márcio Meireles, justíssimo, se diga. Mas, não é
só. Ou é isso e muito mais.
O que se destaca como relevante é o que cada um desses
personagens encarna e diz: o comerciante de imagens e peças antigas,
ganancioso e conciliador com a vizinhança; a senhora dona do cortiço,
austera, moralista de araque que se arrepia diante da primeira historinha
picante, mas se mantém durona durante toda à sua vida; os meninos Cosme e
Damião, erês comuns na Bahia que vão do mar à morte com suas estripulias,
passando pelas escadarias do Pagador de Promessas com seu tobogã a venda de
fitas do Bonfim à turistas; o traficante explorador e covarde; o artesão
firme em seus ideais na valorização e afirmação da negritude; o
transformista conformado e sagaz; a mulher negra revoltada e lutando contra
a submissão do maridão negro bonito e metrossexual; a menina baiana que vem
do interior conhecer um novo mundo e se entrega de corpo e alma nesse novo
ambiente; o policial que ganha pouco e sobrevive com bicos; o nativo pobre
catador de latinhas e ajudante da tenda.
Enfim, uma mensagem em cada canto, em cada cena, recheadas de
sensualidade e beleza, sustentadas numa trilha sonora da melhor qualidade.
Para quem é baiano é arrepiante a batida do Ilê Ayê na saída da Ladeira do
Curuzu, o hino para oxum, o suíngue de Tatau do Araketu e a força dos
tambores do Olodum.
Belo filme, pois.
https://bahiaja.com.br/artigo/2007/04/14/a-baianidade-em-o-pai-o,57,0.html