Foto: DIV |
Abre-se a porta do coração para quem se pensa conhecer |
Custei a ver o filme premiado com o Oscar de melhor estrangeiro. Li algumas boas críticas, adiei, e finalmente, fui , incentivada pelo meu terapeuta, que me avisou sobre um personagem importante no enredo: uma porta.
Ao me envolver pela trama policial e pelo romance, percebi-me tensa e racional. A doutora Irene, que sempre deixava a porta da sua sala aberta, diante do olhar apaixonado do seu subalterno perito judicial, um obstinado que detecta o segredo de um criminoso, exatamente pelo olhar que está presente em várias fotos antigas da vítima, apresentadas pelo marido viúvo, inconformado pela violência do assassinato da linda mulher amada.
Durante toda a exibição prestei muita atenção aos personagens, seus olhares fortes, profundos, as mazelas emocionais que, injustamente, percolam as portas da justiça, os dramas pessoais, de quem exerce profissão de descobrir, prender, interrogar, perseguir ou julgar alguém que mata alguém, e, segundo as leis da Argentina, devia ser condenado à prisão perpétua.
Vi que a vida transcorrida nos 25 anos de história por que passam os protagonistas do enredo, muitas são as prisões em que se enclausuram, desde a rigidez de princípios ou da solidão de valores a defender, vi que o argumento mereceu o prêmio por interceptar as portas de almas e corações, algumas vezes tão fechadas em olhares que tentam abrir-se para revelar emoções, noutras tão abertas para que todos partilhem os segredos das conversas. Estas, nunca se permitem existir sinceras, camuflam-se, assumem versão conveniente, a vida segue, as pessoas envelhecem, nem sempre amadurecem, e muitas vezes se tornam mesmo prisioneiras das suas histórias, dos seus passados. Gastam seu tempo repetindo tramas ou revivendo episódios reproduzidos em maior ou menor escala.
Há pouco tempo, uma noite, dormi, por descuido, com a porta da minha casa, aberta, não lhe passei a chave. Na manhã seguinte, pus-me a conjecturar, com a viagem meio alucinada de escritora e contadora de histórias o que poderia ter-me acontecido. Um invasor, talvez um estuprador, um ladrão, sei lá, uma casa térrea, cuja porta se manteve destrancada toda uma madrugada, onde vive e dorme uma mulher solitária. Daria um roteiro para outro filme de suspense, imagino.
Mas, não se deve abrir porta por descuido. Abre-se a porta do coração para quem se pensa conhecer. Abre-se a porta da casa para quem é amigo e confiável. Abre-se as janelas da alma para que os bons ventos tragam felicidade, e é saudável fechá-las diante dos invernos rigorosos, das tempestades e dos vizinhos alcoviteiros.
Grande filme. Fez-me repensar sobre a infeliz necessidade de se usar cadeados, do medo da violação, da incerteza dos amores que vivem pelas ruas e que não sabem conviver em salas ou sobreviver em conversas nas mesas de jantar. Amores talvez que precisem somente de camas mal arrumadas, pequenos espaços de fuga, amores adolescentes, quase infantis, mas que também guardam lembranças de intensos e secretos olhares.
Saí do cinema imaginando que 25 anos não representam quase nada... Como diz o tango tradicional, vinte años no es nada... o que é e conta, realmente, é o momento em que um sobrevive e se liberta dos seus passados revividos, que se livra das suas próprias prisões perpétuas.
Aí, como no final do filme, o sorriso brilha e o olhar se enternece, a palavra solta o verbo preso na garganta, a declaração de algum amor sufocado explode na sala, que, embora de porta fechada, se transforma então no reduto mais liberado do sentimento que andou buscando espaço e ziguezagueou por muito tempo nos confins da dúvida, nos porões da doença emocional, na escuridão da vingança, na infelicidade de um dia-a-dia tirano ou mesmo, na tentativa de fuga de algum assassino confesso.
O que me deu intenso prazer ao assistir "O segredo dos seus Olhos" foi a sensação plena do quanto é importante estar-se atento para abrir ou fechar portas nesta vida, que nos impulsiona, inadivertidamente, a olhares cujo segredo pode ser desvendado, repentinamente, pela razão ou pela emoção, melhor que o seja por ambos, em sintonia com a magia do encontro humano verdadeiro.
* Cida Torneros, jornalista e escritora. Edita o Blog da Mulher Necessária.
https://bahiaja.com.br/artigo/2010/05/11/o-segredo-dos-meus-olhos-uma-porta-e-magia-do-encontro-verdadeiro,519,0.html