Foto: Yasmmin Fonseca |
A tragédia anunciada de todos os anos em Salvador e cidades da RMS |
‘O cacau vai cair', dizia o baiano nos meus tempos de infância, morador do Lobato.
O ‘cacau', na verdade, era a pirambeira de mais de 60 metros que desce de São Caetano e bate lá em baixo à beira da linha do trem, onde, antigamente, chegava a maré dos alagados. A ribanceira, de cima a baixo, começou a ser ocupada desordenadamente pelos mais pobres desde a década de 50 e, a cada outono de chuvas, meia banda de morro descia (e desce lá e acolá)) levando casebres e ceifando vidas. Então, a expressão ‘o cacau desceu' virou sinônimo de tempestade com desastres urbanos na nossa velha e perigosa cidade.
Conhecemos bem as chuvas de março/abril em Salvador e seus estragos. Isso é do tempo de Thomé de Souza. Piora a cada ano em virtude das construções irregulares permitidas nas encostas e baixadas, pela falta de manutenção, carência de uma campanha sistemática e contínua de limpeza pública, de cuidados com canais e bocas de lobo em ‘operações chuva' que devem ser feitas três meses antes de as chuvas caírem etc e tal ...
Tudo bem sabido por todos, mas sempre desprezado pelos ‘chefes' de plantão de todos os matizes politiqueiros, em toda a região metropolitana (pra gente se ater às nossas proximidades e urgências).
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Lembro-me de uma chuvarada dessas nos anos 70, eu ainda repórter da Tribuna da Bahia, quando a rua Djalma Dutra virou um rio caudaloso, arrastando tudo em direção às Sete Portas, e dormimos todos na redação porque o toró e a enxurrada duraram a noite e madrugada inteiras. Um caos.
No início da administração (começo da década de 1990) do finado Fernando José (que Deus o tenha) choveu três dias seguidos, a cidade ficou debaixo de água e lama, meia banda da Suburbana veio abaixo e muitas pessoas morreram na lembrada ‘tragédia do Motel Mustang'. Dias de horror.
O alerta deste ano de 2010 aconteceu em janeiro, com os dias seguidos de tempestade em São Paulo, depois no Rio de Janeiro, e o calor infernal do verão. Mas... que mal pergunte, o que foi feito de precaução, apesar dos avisos?
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Agora, tragédia consumada, os incontáveis prejuízos em cada canto, moradias destruídas, famílias ao relento, vidas ceifadas, desamparo, falta de luz, de água potável, de transporte para o trabalho, aulas suspensas, postos de saúde lotados, medo, Lauro de Freitas e Santo Amaro em estado de calamidade, Salvador travada, arriada, ultrajada...
Ah, aí então, as autoridades entram num helicóptero, sobrevoam o miserê e, do alto, decretam ‘estado de emergência ou calamidade', pronto! Nem melam as mãos. Dever cumprido. Como se isso bastasse para que todos possamos dormir em paz, tranqüilos e satisfeitos com nossos (?) governantes e administradores públicos.
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Daí, dizem, vêm mais e mais verbas estaduais, federais (que o povo não vê nem sabe para onde vão) e, daqui a uns dias, aparecem placas, às dezenas, imensos outdoors espalhados em cada canto com o dito ‘Operação Chuva' e assinaturas de todos os interessados em aparecer como autores das benfeitorias.
E as obrinhas ‘meia boca' se arrastam o resto do ano inteiro em tapa-buracos e remendos, obras que nunca acabam porque devem ser vistas por todos os eleitores, até as urnas... Ou melhor, até as próximas chuvas do próximo outono, sempre esperadas. Tempestades cada vez mais arrasadoras, porque a Mãe Natureza anda zangada com nossos malfeitos e porque, mais que tudo, nada, ou quase nada se faz direito e sob o devido planejamento quando se usa o dinheiro público. A ‘indústria' das chuvas é prima-irmã-sobrinha da velha ‘indústria' das secas.
Mas, nesse instante, o importante é ter números para alardear.
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E administrar cidades não é fazer politicagem. É varrer, é limpar todo dia, fiscalizar... é canalizar e fazer esgotos decentes, construir vias que durem e resistam (como a Pituba, né ?), é fazer com que os jovens frequentem a escola o dia inteiro, que os postos de saúde funcionem de verdade 24 horas, que se gaste a verba de comunicação com campanhas educativas e de serviço e não com promoções pessoais, que se faça a dragagem dos canais com freqüência, que não se permitam mais barracos nas ribanceiras e sobre os córregos, que se respeite o fluxo das águas e que se ofereça um transporte público decente...
(Arre! Por que nas campanhas eleitorais todos sabem disso tudo de cor e salteado, na ponta da língua?)
Administrar cidades é gerência, é ir para a rua, descer pirambeira, sujar os sapatos, ouvir, fiscalizar obras, cobrar, cuidar da vida das pessoas antes de tudo. Plantar cidadania.
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Agora... desgraça consumada, resta meter a mão para sanar, minorar as dores, as chagas da cidade. Amparar os desabrigados, os que perderam tudo. Restabelecer o tráfego, reparar os danos, religar a luz elétrica na periferia, fazer voltar a jorrar água limpa nas torneiras, dar condições de a vida voltar a fluir com um mínimo de dignidade.
Amém.
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Goteiras e caganeiras
E o tal Congresso da ONU no Centro de Convenções, hein? Que fiasco! Vinte milhões.
Enquanto alguns engravatados falavam de segurança e justiça, bem seguros e justamente abrigados, do lado de fora a absoluta maioria da população se afogava nas ruas, na lama, à mercê dos assaltantes e saqueadores, os carros boiando, as famílias vulneráveis em suas choupanas, à espera da justiça... dos céus!
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Tudo armado para a reinauguração do Centro de Convenções da Bahia, nove meses parado em obras, um grande congresso internacional, ótimo palanque! Eis que a chuvarada ...
E, já na abertura, os congressistas corriam das pingueiras, goteiras por todo canto, alguns sanitários interditados, o ar condicionado que não funcionava bem em todos os ambientes e ... para completar, na quinta, a comida servida deu caganeira geral. Até tiveram de interditar um restaurante ‘chique' do local por problemas ‘sanitários', baratas à mesa. Verdade!
Quanto às resoluções do congresso em favor da segurança pública, da justiça para todos... bem... ‘ora homecreia!'
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Mas no encerramento tem show de Daniela Mercury com a Orquestra Dois de Julho (a $ 173 mil) e de Carlinhos Brown (a $ 186 mil). No reboleichon,chon... Saiu no Diário Oficial, sério!
Sabe quem está pagando a conta? A Secretaria de Cultura do Estado, a mesma que não tem verba disponível para repassar aos editores e escritores contemplados pelo Edital de Cultura da própria secretaria (Fundação Pedro Calmon) realizado no ano de 1998.
Mas, pra que servem livros?
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Poetando com Zé da Luz, poeta popular nordestino :
" Brasi cabôco não come
Assentado nos banquete,
Misturado cum os home
Da casaca e anelão...
Brasi cabôco só come
O bode seco, o feijão,
E as vez uma panelada,
Um pirão de carne verde,
Nos dias de eleição,
Quando vai servi de iscada
Pros home de pusição!
Brasi cabôco não sabe
Falá ingrês nem francês,
Munto meno o putuguês
Qui os outro fala imprestado...
Brasi cabôco não inscreve;
Munto má assina o nome
Pra votá, pru mode os home
Sê gunverno e diputado! "
(Zé da Luz)
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Zédejesusbarrêto, indignado jornalista e escrevinhador, morador de Santo Amaro do Ipitanga.
(16abril/2010)
https://bahiaja.com.br/artigo/2010/04/16/o-cacau-vai-cair,510,0.html