Salvador é minha mãe preta, farta e bela, de colo macio e aconchegante.
Vejo-a bem mais jovem, na minha infância, quando a linha do bonde da Circular acabava no largo (cadê as baianas?) de Amaralina e o resto pra cima era só praia e vento e mar e coqueiros e sonhos. Quem se aventurava?
Vejo-a nos tempos das marinetes, dos ônibus elétricos de Hélio Machado, da Água de Meninos do meu pai barraqueiro vendendo cachaça "Chora na Rampa" pro Capitães de Areia que ganhavam a vida carregando no cocuruto sacos imensos de mercadoria apanhados nos saveiros que ancoravam na coroa e que abasteciam a cidade com a fartura do recôncavo. Saveiros que encostavam também nos alagados da Santa Luzia, no Subúrbio, bem antes do Lobato, o trem passando de cinco em cinco minutos pra Paripe, Alagoinhas, Mapele, Juazeiro, Aracaju,
Minas, São Paulo...
Cadê o trem? O de hoje não cabe no buraco do túnel, então de que vale?
Salvador de Cuíca de Santo Amaro entrando nos trens e bondes pra arrepio das donzelas e mães de família, cruz credo, home de boca suja.
Que bom lembrar do friozinho no pé do umbigo que era subir e descer o elevador, agüentando firme pra não rir e não meter vergonha.
O cheiro de incenso e de angélicas sufocando a multidão dentro da igreja do Bonfim, o cheiro de dendê fritando o acarajé nas ruas, o cheiro de mijo em cada esquina, os batucajés das noites atiçando a curiosidade, as novenas de Santo Antonio nas casas vizinhas, o esfrega-esfrega com as meninas na disputa pelo lugar nas janelas, o mês de Maria chuvoso, o medo do confessionário.
Salvador de minha adolescência, anos 1960, no Vila Velha, vendo Bethânia, Cae, Gil e Gal no "Essa Noite se Improvisa".
O Teatro de Cordel com Othon Bastos, Mário Gusmão, Marta Overbeck, o Teatro de João Augusto que me abriu janelas de sensibilidade para o mundo. Os concertos nas quintas-feiras sagradas na Reitoria, apurando as oiças e paquerando as moças.
Sanfellipo jogando na Graça, o Leônico de Bolinha e Careca campeão baiano.
As torres de suas igrejas, as gameleiras de seus terreiros, os requebros de suas mulatas, o doce mel de seus favos, as pedras que rebatem suas marés, as ladeiras, as baixadas, a mistura, o casario, a benção do padre, a água benta da terça-feira no São Francisco, o berimbau no Terreiro de Jesus e Mercado Modelo, a pinga da Cantina da Lua, a benção da capoeira, o baba de Piatã na areia batida, o saveiro cruzando o Forte de São Marcelo, a velha rampa do Mercado, o pôr do sol no Porto, o filé de Juarez, a regata nos tainheiros, a segunda-feira gorda, a canoa pra Plataforma, o baseado na Ribeira, a Fonte Nova cantando o hino sagrado do meu Bahia... Ah, é só saudade!
Cidade amada, paixão de toda vida. Sem rugas, sem rusgas, a benção de seu filho envelhecido, oh ! minha cidade, cidade-mãe de tanto azul, tanta luz, tanto mar, tanto vento, tanta cor e tanta gente de cor bonita que nunca me deixou sair de vez, preso pelo umbigo, pelos seus encantos.
Choro quando te vejo triste. Choro quando te vejo suja, desgovernada, violenta, preconceituosa. Porque sua alma é livre, suas portas sempre foram e serão abertas, minha cidade azul prateada.
Reino de Iemanjá, d'Oxum, Iansã ... Oxalá te guarde, Ogum te proteja, Senhor do Bonfim te guie para sempre, amém.
https://bahiaja.com.br/artigo/2007/03/28/benca-mae,47,0.html