Foto: Robison Mendes |
A festa da Irmandade vai ser neste final de semana, em Cachoeira |
É no presépio plantado às margens do Paraguaçu, recôncavo baiano,
que se abriga uma das maiores relíquias afrobaianas:
A irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte.
Um exemplo de resistência e de identidade de um povo que,
mesmo diante da voracidade desses tempos digitais,
preserva seus costumes ancestrais à base da tradição oral.
Geração a geração.
Manifestação também do mais puro sincretismo religioso baiano,
memória dos tempos de escravidão,
quando os batuques da noite ecoavam nos altares das igrejas
e os cânticos das procissões complementavam as obrigações
dos terreiros jêje-nagôs, entre plantações de fumo e canaviais.
A secular irmandade da Boa Morte,
de acordo com os estudiosos e os costumes,
é uma confraria exclusivamente feminina fundada
na Igreja da Barroquinha, em Salvador, ainda no século XVIII,
por africanas libertas nagôs (iorubanas, vindas do Benim/Nigéria)
e vinculadas ao candomblé.
O termo ‘Boa Morte' é uma referência à crença católica de que
Maria, a mãe de Jesus, não morreu, apenas dormiu
e seu corpo teria sido levado aos céus pelos anjos de Deus.
Trata-se da chamada Assunção de Nossa Senhora,
um mistério de fé que a igreja católica celebra com pompas litúrgicas
no dia 15 de agosto, a data da missa solene e da grande procissão
dos festejos da irmandade das negras de Cachoeira.
O culto à chamada ‘boa morte' ou ‘dormição de Maria' já existia
desde as origens católicas no Brasil, trazido pelos portugueses
e materializado em imagens e templos dedicados
a Nossa Senhora da Glória ou da Vitória.
A ‘glória' e a ‘vitória' sobre a morte.
Para as negras nagôs, no entanto,
o culto a Nossa Senhora, a Virgem Maria que não morreu e subiu aos céus, nunca significou uma negação da tradição e da fé ancestral
nos Orixás (ketu/nagô) ou Voduns (jêje/nagô) africanos.
Tanto que, em torno de 1830, essas corajosas e libertárias mulheres (Yás) fundaram bem nos fundos próximos da igreja da Barroquinha
um terreiro dedicado a Xangô ( o rei de Oyó, sítio nigeriano),
denominado Iyá Omi Axé Airá Intilé,
considerado como um dos primeiros dos candomblés nagôs da Bahia,
que deu origem à Casa Branca, ao Gantois e ao Axé Opô Afonjá.
À essa época, Salvador, a Cidade da Bahia, formigava de negros (boa parte nagôs, de língua iorubá) e os malês (nigerianos nagôs islâmicos) lideravam revoltas que inquietavam os poderosos da cidade, dando razões ao recrudescimento da intolerância étnica e religiosa, abrindo espaços
e ‘justificando' uma onda ainda maior de repressão contra os negros africanos escravizados e seus descendentes na capital baiana.
O quadro social de violência e de ameaças contra quaisquer manifestações dos negros tangeu mais tarde o terreiro de Xangô das proximidades da Igreja da Barroquinha e do centro da cidade, e dispersou muitos agrupamentos africanos em toda a área urbana. Assim, muitos desses afro-descendentes, os mais aquinhoados, retornaram à África. Outros, de pouca ou nenhuma posse, fugiram para o mato, esconderam-se nos arredores da urbe.
Ou tomaram o rumo do recôncavo, onde se agregaram ao cultivo de roças, à labuta no cais e atracadouros de saveiros, puseram-se a serviço nas casas-grandes, nos engenhos de cana, no plantio do fumo, no serviço avulso de ganho, ou ainda sobreviveram no exercício de pequenos ofícios, aqui e acolá.
E teria sido assim, conforme relatos e estudos,
que valentes mulheres nagôs, muitas de origem e herança jêje
(de língua fon, do antigo Daomé, hoje Benim) levaram a devoção
de Nossa Senhora da Boa Morte até vários sítios do recôncavo.
Somente resistiu ao tempo e preservou-se tão imponente até hoje
a Irmandade da Boa Morte de Cachoeira, um dos maiores portos da região, escoadouro maior da riqueza do recôncavo para a capital.
Lá, à beira do Paraguaçu, nas encostas das suas margens, a fé em Maria
e o culto jêje a Nanã (Vodum mais velho das águas, dos pântanos)
e a Dã (a cobra, o arco-íris) permaneceram, lado a lado, bem vivos.
Como sempre aconteceu desde aqueles tempos,
a prática dos rituais de devoção a Maria, mãe de Jesus, dormida e gloriosa, acontece todo mês de agosto e atrai muita gente, até do exterior,
pela sua tradição e riqueza históricas.
Os rituais misturam reza de terço, ladainhas, cânticos, missas solenes, procissões, comilanças, danças e festanças populares
com cerimônias, batuques e obrigações secretas nas madrugadas
dos terreiros, cultuando com a mesma intensidade e fé em Maria,
a Nanã Buruku, mãe de Exu e Omolu na tradição ancestral africana,
e Dã, a serpente sagrada dos jêjes.
O povo participa dos festejos onde acontecem jantares com comidas sagradas do culto afro; extasia-se com a beleza das cerimônias religiosas católicas de tons medievais, os trajes afro-tradicionais, os adereços ricos e raros das mulheres da irmandade garbosas em suas roupas ora brancas, ora coloridas, torços, colares, joias, balangandãs e panos da Costa. Um luxo!
São mulheres idosas, algumas com mais de 90 anos,
todas descendentes de escravos.
Reza a tradição passada de mãe pra filha e cumprida rigorosamente,
que só entram na irmandade mulheres acima de 45 anos,
depois de arrefecido ‘o fogo' da sexualidade.
A irmandade, que mantém sede, estatutos, regras, obrigações e hierarquia definidas sobrevive de doações arrecadadas na comunidade pelas iniciadas, de algum auxílio dos poderes públicos - que, afinal, se beneficiam da tradição que atrai turistas do mundo inteiro, principalmente dos Estados Unidos - e da ajuda de algumas organizações internacionais, como universidades que estudam/pesquisam essas manifestações históricas e populares.
As dificuldades para a preservação dos costumes são enormes e as relações com as autoridades da igreja católica nem sempre foram ou são fraternas, apesar dos anos de convivência.
Mas a Irmandade da Boa Morte resiste.
Como escreveu o antropólogo e professor Sebastião Heber Vieira Costa, autor do livro ‘A Irmandade da Boa Morte e o Ícone da Dormição de Maria':
‘A expressão afro dessa festa, na sua interpretação da crença cristã, é exuberante, plástica e mística. As irmãs não se ‘apresentam' apenas uma vez por ano, mas vivem o seu dia-a-dia em torno do evento, que se projeta nas suas vidas. É como se quisessem entrar, mergulhar no movimento morte-vida que a festa celebra. É como se todas tivessem celebrando as suas próprias ‘boas mortes' que a primeira, a de Maria, quer, de algum modo, anunciar'.
No final, como tudo nessa Bahia do bom Deus,
tudo acaba numa grande festança pelas ruas de Cachoeira:
Exibições de manifestações folclóricas com capoeira e maculelê,
muito samba-de-roda (patrimônio da humanidade)
e chula de terreiro.
A ‘morte' vira uma festa.
A Boa Morte !
https://bahiaja.com.br/artigo/2009/08/14/cachoeira-da-boa-morte,453,0.html