Na noite do dia 31 de dezembro, enquanto a cidade se preparava para réveillon e a passagem do ano novo, ogans (sacerdotes), ekedes (sacerdotisas) e vodunces (médiuns que incorporam os espíritos, chamados voduns) se reúnem no Terreiro do Bogum, no bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, capital do estado da Bahia - a Roma africana na diáspora-, como fazem há mais de 300 anos.
São descendentes, sacerdotisas, continuadoras e continuadores da tradição do povo Jêje, que viveu no território da ex-colônia de Portugal chamada Dahomé, atual República do Benin, e foram trazidos por mercadores de escravos para a região do Brasil onde preservam, como expressão da resistência desse povo de língua fon, as tradições espirituais que trouxeram consigo nos calabouços dos navios negreiros, atravessaram o Atlântico até a nova terra onde nunca esqueceram suas raízes.
Na Bahia colonial o povo Jêje escravizado pela coroa portuguesa logo se destacou. Tivera contato com as caravanas árabes quando os povos de religião mulçumanas haviam atravessado da Ásia para a África e muitos haviam optado pela fé em Alá. Conhecia a leitura e a escrita e se notabilizou como mestres de ofício, trabalhando de alfaiates, lapidadores de pedras preciosas e produtores de jóias.
Nunca foram integrantes da chamada escravidão braçal, que era usada nos canaviais da cana-de-açucar do Recôncavo baiano, onde nasceu o compositor Caetano Veloso, e permaneceram escravos na cidade do Salvador exercendo profissões consideradas nobres. No século XVIII os Jêje se envolveram numa revolta contra coroa portuguesa que ficou conhecida na História do Brasil como Revolução dos Alfaiates, liderada pela elite negra e que visou proclamar a independência do Brasil, como aconteceu no Caribe com a revolta bem sucedida da população afro do Haiti.
A revolta, contudo, foi descoberta antes de começar pelas autoridades portuguesas, que prenderam e executaram seus líderes no Largo da Piedade, centro urbano da capital da colônia. Todos foram enforcados, teve os corpos esquartejados e depois expostos a público como exemplo para que outros escravos não pensassem em revolta contra escravidão. Hoje, o registro dessa história nas ruas do Engenho Velho da Federação é o nome oficial da ladeira que liga o bairro do povo Jêje à ampla avenida Vasco da Gama, sempre agitada pelo vai-e-vem incessante de milhares de veículos. É a Ladeira Manoel Bonfim, como chamava-se um dos líderes da revolta executado no Largo da Piedade.
Popularmente, a via pública é chamada de Ladeira do Bogum, numa referência ao santuário religioso de origem Jêje que ainda existe e sobrevive bravamente no local. Enquanto no Times Square soava a contagem regressiva para chegada do Ano Novo e em milhares de capitais e cidades do mundo os fogos fazem brilhar a noite em comemoração do ano que nasceu, ogans, ekedes e vodunces da tradição Jêje, enfileirados e vestidos de branco, desciam sileciosamente a Ladeira Manoel Bonfim, espiritualmente concentrados, levando apenas uma quartinha de barro na cabeça ou no ombro.
Numa fonte de água também centenária um participante da cerimônia enchia as quartinhas com o líquido e entregava, uma a uma, aos participantes da silenciosa procissão. Todos sobiam silenciosamente e, em alguns pontos da ladeira, onde só existem construções erguidas pela a explosão demográfica da capital baiana, paravam e faziam saudações em língua fon aos voduns, como faziam os antigos integrantes do povo Jêje na época em que toda área era dominada pelas matas.
Quando chegavam no Terreiro entregam a quartinha contendo água da fonte à Nadoji Índia, líder religiosa do povo Jêje, que a despeja a água sobre um "assentamento" que simboliza Olisá, o maior de todos os voduns do povo Jêje. É a festa Água de Olisá, que abre o ciclo religioso do povo da República do Benin na Bahia, Brasil, e se estende pelos meses de janeiro e fevereiro de cada ano. Enquanto isso, as festas de Réveillon explodiam em todos os cantos da cidade sem que a maioria da população soubesse que a data era marcada no Engenho Velho da Federação por uma cerimônia milenar do povo Jêje.
O dia 1 de janeiro de 2009 foi dedicado as Águas de Olisá. A homenagem se encerrou no domingo à noite. Vem am seguida vem as festas de Azonwônodô, de Gbessên, de Lokô, de Gú, Agangatolú e Ágüe, de Kavine, de Tobossi, de Hoho, e de Azonsú. O ciclo é encerrado dia 10/02 coma festa de Alugbagê. Salve os voduns do Bogum e do povo Jêje!
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