Dimitri narra sua aventura numa viagem ao Egito (Foto/Div) |
Qualquer turista normalmente constituído, quando sai do Cairo para ir a Assuan, terá passado antes na agência a comprar sua passagem de barco para subir rumo ás nascentes do Nilo.
Assim viverá a deliciosa impressão, tingida de uma pontinha de insegurança, de incorporar a sofisticada velha senhora que escreveu sobre mortes e venenos olhando as velas aquareladas das felucas.
Estamos, é claro, falando de Agatha Christie. Não é atitude de querer ser diferente, acreditem, mas não consigo me enquadrar no esquema turista de grupo e guia bilíngüe.
Escolhi subir o bíblico rio de trem. O relativo conforto da primeira classe não impede a poeira do deserto se acumular nos míninos recantos. Nariz inclusive. Melhor não bater nas almofadas da poltrona. Levantar-se-ia uma pesada nuvem marrom. À esquerda, todos os tons do barro antecedem o ouro das dunas.
Na fachada das casas, cujos proprietários são hadj, havendo feito a sagrada peregrinação a Meca, foram pintados os elementos que simbolizam a santa odisséia. Avião, barco ou carro, frases do alcorão, palmeiras e animais. Perpetua-se a antiga tradição da iconografia narrativa, como fizeram as patrícias vilas romanas e as igrejas góticas.
Não falarei de Luksor e de seus imensos templos. Mas do Nilo, que desfila desde a janela de meu compartimento, impossível calar a hipnótica beleza. Tudo nos fala dos Testamentos. Vivo a realidade das memoráveis leituras de minha avó. Cada noite, uma página da Bíblia.
Aqui estão os magros, atemporais e elegantes personagens, vestidos de longas galabiehs de tons pastel. O azul, mais claro que as águas do rio, o verde, leve como folhas recém desabrochadas, o rosa, desvanecido e meigo como boca de adolescente, o branco, tais quais as garças que voam em direção ao norte... Trabalham com enxada, ajudados por burros e camelos. Filme mudo, cadenciado pelo monótono tacataque do trem.
Assuan é fim de linha. Lá começam as dunas do deserto líbio. Aqui estavam as primeiras cataratas, hoje substituídas pela gigantesca barragem que desalojou Abu-Simbel. Permanece a ilha Elefantina que hospedou uma das mais antigas capitais do mundo, três milênios atrás de você. Agüenta hoje o teutônico Oberoï Hotel. Olhemos piedosamente do outro lado.
Andar à toa, sem obrigação de visitar ruínas ou museus, observar a gente, o ser humano na sua essência rotineira. Os barcos dormem, velas enroladas. As mulheres voltam da escola com as criancinhas. Os turistas fotografam o óbvio. Um mendigo, numa esquina, oferece seu rosto de leproso onde faltam nariz e parte da boca. Homens passam com suas bicicletas.
Entro em lojas onde as mercadorias "Made in Egypt" diferem pouco, unidas pela mesma poeira bege. Estas ruelas foram o antigo mercado núbio, da tribo de negros que anunciam o outro lado o Saara. Por que desapareceu? Boa pergunta que ficará sem resposta. Não sei. Um estabelecimento é bem mais velho e desleixado que os outros. As coisas se amontoam sem arte nem cuidado.
O que é isso, lá, em cima do armário? O comerciante faz um esforço evidente em me atender. Haja pachorra!
"... Restos do tempo dos núbios". Sem entusiasmo, sobe num banquinho, apanha as duas peças e faz um vago gesto de limpá-los. São dois grandes cones de palha trançada cobertos por um desenho cuidadosamente bordado de koris brancos. O homem afirma que os núbios colocavam estas peças de cada lado da porta de entrada para afastar os maus espíritos. Ah1 Já me sinto em casa, a meio caminho entre deuses lares e Exu.
Entramos na discussão de praxe tipo Mercado Modelo sobre o preço pedido e a quantia ofertada.
Os dois símbolos protetores dominam hoje a minha sala principal em cima de um móvel-bar anos Kubitscheck, preservados, com todo respeito, por caixas de acrílico. Nada de confundir poeira saariana com subtropical! Cláudio, que restaurou as peças, ainda não entendeu, e eu muito menos, como os búzios foram costurados na palha. Tentou de todas as formas e acabou declarando incompetência, contentando-se em colar os que faltavam.
E vá falar em povos primitivos!
https://bahiaja.com.br/artigo/2008/12/01/uma-viagem-ao-egito,281,0.html