03/12/2008 às 12:02
UM BOLERO PARA PACHECO FILHO
Cláudio Leal é jornalista
Foto: Foto/Ils |
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Qué loco empeño/de revivir las cosas/de um pasado ya muerto//del fantasma de ayer |
Pacheco Filho, uma delicadeza. Coluna empertigada para honrar a voz. Vincos fundos no rosto, carteira no sovaco, camisa de botões. Homem de gotejar uma indignação diária. Erguia o dedo e um discurso iracundo. "Não leio mais esta porcaria!" - e estalava o jornal na mesa do café. "Já leu a história de Marina transar com Gal Costa? Pois publicaram!"
Dividia musicalmente as sílabas, esse Balbino Pacheco de Oliveira Júnior. Na década de 40, quando iniciou a carreira radiofônica, arrastava as fãs e os erres. Guapo, bigode à Orlando Silva, amaciava travesseiros no programa "Só para mulheres...", da Rádio Cultura. Seu charme nascia da respiração. E a popularidade o conduziu à Câmara de Vereadores de Salvador (1959-1962).
Não fez mal em largar o emprego para cortejar uma bailarina em Buenos Aires. Outro amor retornou nos anos da velhice, na Rádio Metrópole (única a abrigá-lo nos anos finais). A fã em idade provecta surgia no ar, e mordiscava. Pacheco, assim-assim, ressabiado, esboçava o desgrude. Mas a madame insistia em relembrar as noites de priscas eras. Longe dos microfones, ela segredou: "Aquilo que você me pediu há 30 anos, eu posso lhe dar agora..."
Pacheco se definia por canções e filmes. Conhecia profundamente a música brasileira e o cancioneiro espanhol. Nos últimos dias, sobraçava uma cópia do filme "O corcunda de Notre-Dame". Nem a versão de Anthony Quinn, nem a de Lon Chaney. Preferia Charles Laughton, da RKO.
Guardava as cerimônias dos locutores de antanho. O naufrágio do universo radiofônico imprimiu à sua voz uma cadência anacrônica. Alertei-o que uma amiga era sua fã. E ele se desfez, no microfone, em forma de música: "Só nós dois é que sabemos/ O quanto nos queremos bem/ Só nós dois é que sabemos/ Só nós dois e mais ninguém".
Era o radialista da palavra medida, da memória de almanaque; e não das ameaças veladas, da valentia contada na bandeira 2, dos achaques de outras bocas da Província. Gramou a pobreza, ao fim da glória que não consola. Um entre tantos náufragos da era de ouro.
Aos 82 anos, sentia a perda do fôlego, o desfazimento do corpo. Como haveria de reconquistar as fãs que lhe negaram o ouro há 30 anos? Para Pacheco, uma música a mais: "Frio en el alma", de Miguel Ángel Valladares, na voz de Gregorio Barrios. "Qué loco empeño/ de revivir las cosas/ de un pasado ya muerto,/ del fantasma de ayer."
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