Vitor Hugo, escritor francês, tem uma cama que está no centro histórico de Salvador |
Precisando de uma cama para um quarto de hóspede na casa recém-comprada no centro histórico, andei futucando nos lugares mais improváveis de Salvador até entrar, mais uma vez, numa loja da Baixa dos Sapateiros, cujo dono, velho e amável judeu - seu nome por enquanto foge de minha memória - era perigoso vendedor.
Da loja, hoje somente subsiste no alto da fachada uma estrela de David e umas palavras em hebraico, provavelmente citação do Talmude.
Por trás da fachada, dá para ver o estacionamento que leva ao Pelourinho. Dizem que o governo nunca chegou a indenizar o bravo comerciante. Deve ter falecido de desgosto, como outros, vítimas de uma restauração tão repressora quanto apressada.
Desmontada, esquecida contra a parede, uma cama de corpo e meio, lembrando muito vagamente um estilo entre gótico e rústico, velha de uns quinze, no máximo vinte anos, esperava um melhor destino sob boa camada de poeira e mofo, duas especialidades do estabelecimento.
O preço sendo mais que razoável, levei sem tardar o móvel para a casa do Santo Antônio.
Prontamente montada, colchão revestido de colorido chitão, meia dúzia de almofadas condizentes, uns quadros nas paredes, livros na estante e o quarto estava digno, pelo menos no meu olhar complacente, do rei de Roma.
Pouco depois um amigo francês veio admirar as instalações. Quem não gosta de mostrar o resultado da imaginação suprindo magicamente o vazio do bolso?
Entrando no quarto, o visitante exclamou-se "Ah! Mas esta é a cama de Victor Hugo!".
Risadas.
Realmente, dentro do contexto, ela tomava aristocráticos ares de antiguidade, que não tinha dois dias antes. O tempo passou e, com ironia, sempre mencionava a humorística observação aos curiosos.
Até chegar uma jornalista de afamada revista internacional. A moça, nem tão mocinha assim, tomava notas e mais notas, enquanto o fotógrafo documentava cada canto como se do Louvre se tratasse.
Meses transcorreram. Esqueci a revista, a jornalista e o fotógrafo, até um pesado pacote chegar pelo correio. Era a tal, em vários exemplares. Muita gentileza. Abri o magazine.
Bela impressão, belo destaque da casa. A cama, figurando em página especial, estava legendada como tendo realmente pertencido ao autor de "Os Miseráveis" e do "Corcunda de Notre-Dame"!
Desde aquela data memorável, meu discurso de guia-anfitrião enriqueceu-se com tão saborosa anedota, nascida de uma profissional séria, mas tão dramaticamente séria, que perdera totalmente o desconfiômetro e o sentido do humor.
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