O longo navio branco enfeitado de mil luzes desliza nas águas negras da Baía de Todos os Santos levando seus passageiros na noite do oceano. Que imagem de Salvador guardarão os milhares de turistas que seguiram durante horas calientes os painéis numerados dos guias? Fotos no Largo do Pelourinho, cabeças inclinadas, dedos em V, postais dos ouros de São Francisco, fitas do Bonfim, cocadas...
Nada saberão sobre o desrespeito que ronda nossa cultura, nossa memória. Não lerão os jornais onde os poderes públicos empurram com a barriga as responsabilidades da destruição da mansão Wildberger. O shameball, nova modalidade de esporte.
No noticiário da TV, somos informados que os juízes não querem salários limitados a 22 mil reais. Mixaria. O teto é muito mais encima, perto das nuvens. Nem que para continuar subindo, alvarás escuso-obscuros tenham que ser assinados no limiar da sexta-feira para a dança das escavadeiras no domingo.
Os turistas se contentarão com uma visão cenográfica da Bahia. Fora o perímetro Pelô-Carmô, toda memória está fadada a sumir do mapa. Nossa identidade vai desaparecendo vapt e vupt, devorada pela especulação despudorada.
Onde está o mítico parque do Aeroclube da Boca do Rio? Vão ampliar a ridícula centopéia com mais um "shopping". Esqueçam os coqueiros e as amendoeiras. Viva o Consumo! Estamos nos mudando para Bahiami. OK?
Onde estão as belas casas da burguesia de outrora? Foram construídas com o suor dos negros? Com certeza. Mas também por isso, dígnas de serem mantidas. Quem sabe um dia algum afro-descendente não poderia adquirir uma delas? O refluxo da História não pode simplesmente passar pela vizinhança de patamar em vulgar edifício do Corredor da Vitória.
A palavra Wildberger passou a ser sinônimo de tomada de consciência da opinião pública da capital, divisora de águas. De um lado a safadeza, o despudor, o oportunismo. Do outro lado, um exército de Dons Quixotes: arquitetos idealistas, advogados sonhadores, perigosos intelectuais, artistas inconformados, todos sempre desprezados pelo poder econômico quando não do poder político.
O dado novo é que hoje se trata de uma armada digna de consideração, nem que seja pela força do próximo voto. Oh! João, não falta muito, sabia?!
Nossa única arma é a imprensa, tão volúvel, tão... flexível, mas mesmo assim pontuada de jornalistas de alto vôo. Condores solitários enfrentando os urubus da ganância. Que o digam alguns dos que passaram por estas páginas ou que ainda resistem aos ataques furiosos dos inconformados pelas denuncias.
Urge depositar umas dúzias de rosas aos pés da pequena notável Mary Weinstein que nunca se dobrou nem á pressões nem á difamações de quem realmente deveria ficar bem caladinho para não levantar poeira. Outros também, chargistas e fotógrafos, participam com lucidez desta batalha, enquanto o navio das ilusões se afasta de nossa costa, levando a imagem de um povo pobre-mas-feliz. Yes, nos temos bananas.
O homem se olha no espelho da manhã, depois de uma festa onde não se poupou champagne e caviar. Será que se lembra dos músicos maltratados na véspera? Será que esqueceu ter roubado o belo projeto de outro profissional? Será que não acredita mesmo em outros valores senão os da conta bancária? Nem na hora da missa? Será que respeita a esposa e os filhos? Guarda a boca amarga da recusa de corrupção que ele engoliu. Ele ainda não sabe, mas o inimigo está no seu próprio corpo. Lá no fundo há uma úlcera, um tumor, algo que apodrece lentamente e terminará devorando seu talão de cheques, seu barco rápido, seu helicóptero. O fracasso como ser humano, o maior castigo.
É sintomática a enxurrada de e-mails que aparecem nas telas daqueles que se posicionaram cedo sobre estes assuntos. São textos de apoio, provas, documentos, informações, empenhos em criar movimentos populares, baixo-assinados, fotos antigas. Vontade de dar um basta aos carniceiros predadores. No fundo da baía havia mais do que areia branca e náufragos esquecidos. Correntezas silenciosas que poderão se transformar em stunami barulhento, esmagando os imundos ratos de porão e construtores malandros...
Dimitri Ganzelevitch
Presidente da Associação Cultural Viva Salvador
https://bahiaja.com.br/artigo/2007/02/03/navio-da-noite,22,0.html