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08/04/2008 às 08:02

SOU BRANQUELO E SOU NEGÃO

ZédeJesusBarrêto é jornalista

ZédejesusBerrêto

  Herdeiro euro-afro-tupinambá de pele branquela e desbotada,

nascido num brejo dos Mares bem próximo dos Alagados, sítio de quilombolas

e fugidos malês, criado na mistura de caboclagem e mulataria do subúrbio ferroviário, entre barulho dos trilhos, oratórios, mês de Maria, trezenas pra Santo Antonio, pernadas ao ritmo de berimbaus, tabuleiro de cocada puxa e acarajé, moqueca de papa-fumo, babas na prainha de areia do mangue em hora da maré baixa e, à noite, muito baticum para orixás, inquices e encantados das matas... baiano véi , incomoda-me o racialismo vigente, pragmático e ‘politicamente correto' que tomou conta da nossa terrinha, que sempre foi de todos os Santos, Orixás, Inquices e Encantados das matas, conforme a história nos ensina e nossos avós nos contaram.

Hoje em dia, tudo é racial, black or white, essa ‘moral de jegue' importada,

made in USA, funk/rapeada, de ranço rancoroso e nenhum ganho humano.

Pois, filho do pós-guerra, renascido das cinzas de Hiroshima e Nagasaki, família de migrantes caatingueiros das brenhas pobres do sertão sergipano em busca da

"terra santa" chamada de Bahia, aqui nesta cidade do São Salvador tive a graça

de vir à luz e ser aparado numa gamela por mãos e colo de Mãe Preta,

sob o batismo de Nossa Senhora dos Mares. Que mais querer?


No meu aprendizado e compreensão de vida, negão é ombro amigo,

neguinha é uma flor, meu preto é o irmão do lado, minha preta é a amiga querida, independente de cor de pele.


Assim aprendi na infância, em casa, na rua, na escola e vida afora,

lado a lado com retintos, mulatos, caboclos, morenos, sararás e supostos branquelos de todos os naipes, sem bestagens, porque era tão pobre quanto todos os vizinhos, e com eles aprendi a trocar coentro por limão, molho de pimenta por um punhado de farinha, e a dividir a panelada de moqueca e a porção de fruta-pão, em pratos que iam e vinham, repartindo o pouco do gostoso que tínhamos, que uma mão lava a outra.


Lembro-me, na rua Voluntários da Pátria, ali na Baixa do Cacau,  dos primeiros assalariados que conseguiram comprar geladeira, e logo vendiam abafa-banca à meninada pelas janelas: eram na maioria negros, mulatos, e também brancos e caboclos que foram trabalhar no petróleo, nos poços recém-achados do Lobato, depois na refinaria de Mataripe e, posteriormente, na Petrobrás, e eram chamados de petroleiros. Respeitados, como também eram, à época, os funcionários públicos, vejam só.


Na Bahia em que me criei, e onde aprendi que o bom da vida reside no molho nas diferenças, chegavam saveiros abarrotados de fartura do recôncavo na coroa da Água de Meninos dos capitães de areia; os trens rasgavam o subúrbio de cinco em cinco minutos;  a Catedral e o Bonfim ficavam cheios para se ouvir os sermões de Padre Sadoc, negão de muita sabença, o último dos grandes oradores sacros do país; a Baixa dos Sapateiros, centro do comércio varejista, tinha "trios de cangaceiros" tocando forró nas portas da lojas para atrair clientela...


Nessa Bahia em que fui educado e onde aprendi os segredos dessa vida, tomava-se a benção aos mais velhos, com respeito e sem diferençar a cor da cútis; nessa Bahia negra e farta mãe acolhedora, se alguma discriminação existia era em função do poder aquisitivo, mas, ao invés de choramingar passado, o preto ia à luta, pau a pau; tabuleiro na feira e terno de linho branco no samba de terreiro, orgulhoso de ser.


No baba, era escolhido quem jogava bola, na mesa sentavam os mais chegados, as comadres, os afilhados, de cabelo carapinha ou nariz afilado, tudo igual. O copo d'água ou da pinga partilhada era o mesmo, pra pardo e amarelo.

Na hora do recreio, na merenda, o esfrega-esfrega das brincadeiras entre meninos e meninas não distinguia cor. Lembro de um moleque de minha idade, sarará miolo, que, de tão feio, tinha o apelido de Gabiru. Era abusado e querido. Eu, de tão branco, fui apelidado pelos companheiros de baba de "Palu" - uma corruptela de impaludismo, doença das antigas que deixava o cabra pálido, quase transparente. "Vai Gabiru!, Passa a bola, Palu!".  Quanta inocência!


Hoje, cabreiro com tanta patrulha "politicamente correta", cato palavras para me expressar baianamente, escolho frases: negão pode, e neguinha não? Preto virou afrodescendente, mulato é xingamento. Ceguinho agora é portador de necessidades no campo visual, e viado (com i, porque veado tem quatro patas) virou gay e é também opção preferencial de muito "macho" flex.  Lá ele!  

Eis que, já me sentindo um jovem ancião, procriador de filhos e netinhos mulatos e sararás, porque pra mim a mistura sempre teve a gostosura e a graça do sagrado, ando a pisar em ovos e medir palavras, assustado com o que ouço e leio em preto e branco.


Tem cheiro de maniqueísmo, gosto de fundamentalismo radical, um racialismo que desintegra e nada redime.


Olha que não se aprende assim nos terreiros, não é isso que as Ialorixás, Senhoras do Saber, nos ensinaram e nos ensinam, na busca da felicidade, do bem estar nesse mundo.


Respeito, é tudo. À vida, à Natureza, ao semelhante.  Carecemos do bem querer.


Mas, como outro dia fui chamado de europálido por um jovem militante afrodescendente que nem ao menos sabia que a África é um continente imenso, que fica ali bem defronte, do lado de lá do Atlântico, e que possui realidades diversas, e não é só um país...  Cadê escola, né?  Tem muito eurodescendente pelaí que também não sabe o que é Europa. Ignorância não tem cor.

Essa é a demanda, minha, sua, nossa: Boa escola pública, para todos!

EDUCAÇÃO! É o único caminho para o resgate do respeito humano.

E antes que algum ‘talibã racial' me processe, segue o apelo, já em forma de defesa:


"Se toca, negão. Sou brancão, mas sou baiano, seu irmão"!

Axé.  




https://bahiaja.com.br/artigo/2008/04/08/sou-branquelo-e-sou-negao,184,0.html