Internado no Hospital São Rafael, em Salvador, já gravemente enfermo, o ex-deputado Francisco Pinto mandou chamar o jornalista Claudio Leal, para uma conversa tantas vezes prometida e outras tantas adiadas.
"Chico Pinto quer falar", disse a emissária, uma amiga comum, ao transmitir o recado ao repórter baiano, que atualmente trabalha ao lado de Bob Fernandes na revista eletrônica Terra Magazine, em São Paulo. Claudio tratou de azeitar o gravador.
O jovem repórter sabia estar diante de uma oportunidade única e não havia tempo a perder. Dia 3 de janeiro, TM entregava aos seus leitores uma relíquia: a entrevista com Chico Pinto, republicada terça-feira (com reprodução no Blog do Noblat ), dia da morte do ex-parlamentar de Feira de Santana - pedaço do sertão que ele incluiu no roteiro crucial da política brasileira e da América Latina nos últimos 50 anos, desde que foi eleito prefeito.
Ao reler o texto, a primeira constatação: deveria tornar-se leitura obrigatória, principalmente para jornalistas, parlamentares e governantes de agora. Outra evidência: eis um homem que se conservou inteiro do berço ao túmulo.
Falecido às vésperas de completar 78 anos, Francisco José Pinto dos Santos é um desses exemplares da política que, seguramente, não serão citados futuramente apenas como referência pretérita.
Quem conversou com ele durante o largo período de internamento hospitalar sabe: Chico Pinto conservou praticamente intacta a extraordinária visão de perspectiva, uma de suas marcas pessoais mais notáveis. Qualidade raríssima do homem público "capaz de enxergar presente e futuro do País acima de interesses pessoais momentâneos e além dos limites do próprio umbigo", como me disse uma vez o ex-governador Leonel Brizola, no exílio do Uruguai, ao descrever o político baiano.
Quem mais quiser comprovar, basta ler as últimas palavras do criador da Ala Autêntica do MDB na entrevista a Claudio Leal. Fatos marcantes de seu percurso - às vezes de vitórias, outras de perdas e danos, mas sempre de combate - foram recordados também nesta semana da sua partida.
Relatos de amigos, colegas de parlamento, governantes, antigos e leais companheiros de caminhada, de fé e de briga: Waldir Pires, Sigmaringa Seixas, Joaci Góes, Domingos Leonelli, Colbert Martins Filho, Lídice da Matta, José Carlos Brandão, Celso Daltro, Ignácio Gomes, Pedro Simon, Eduardo Campos (governador de Pernambuco que veio ao enterro "por muitos motivos, além dos laços indeléveis que sempre uniram Chico Pinto ao meu avô, Miguel Arraes"), entre inúmeros outros.
Gente da política e da administração pública baiana e nacional, mas também anônimos com flores ou antigos retratos em preto e branco nas mãos, como as mulheres e homens que, ao redor da igreja do Senhor dos Passos (onde o capelão Luis Rodrigues celebrou a missa de corpo presente), choravam e cantavam músicas e jingles de célebres campanhas na cidade.
A Câmara Municipal, no velório; o templo católico, na missa; as ruas, no cortejo do caixão, e o cemitério de Feira de Santana, foram tomados na quarta-feira por gente de todos os credos e tendências - esquerda, centro, direita, se é que ainda podem ser chamados assim. Cristãos e comunistas, gregos e baianos, até alguns dos mais ferozes adversários do falecido em passado recente. E sempre, em todas as horas, a esposa Thaís Alencar e a filha médica, Thais Furtado Pinto dos Santos.
Mas é preciso constatar: mesmo em País sabidamente tão desmemoriado e perverso com algumas de suas mais representativas figuras, foi pífio, indesculpável mesmo, o espaço praticamente inexistente e o tratamento omisso dispensado na fase final da vida de Chico Pinto pela chamada grande imprensa. Tanto na prolongada fase de doença, quanto na morte e sepultamento do detentor de uma das mais ricas e mais expressivas biografias de parlamentar na história republicana do Brasil.
A partir dos anos 50, até o seu afastamento do palco político, Chico Pinto foi um dos nomes mais presentes nas páginas dos jornais e revistas, além dos noticiários nacionais de rádio e televisão. É estranho - e lamentável -, que em alguns dos principais veículos de comunicação do País, nem mesmo o simples registro da sua morte tenha sido feito.
Mais lamentável ainda que a falha (ou seria omissão deliberada?) se dê no momento que a imprensa nacional - e alguns de seus nomes e órgãos mais representativos - se alinham no cerrado embate de defesa da liberdade de imprensa e do pleno direito de expressão, uma das principais bandeiras levantadas por Chico Pinto nos anos de ditadura.
Com apoio de Barbosa Lima Sobrinho, na ABI, de Audálio Dantas, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, além do empresário nacionalista Fernando Gasparian e o jornalista Raimundo Pereira, o deputado Francisco Pinto e seus colegas progressistas Lysâneas Maciel, Marcos Freire e Alencar Furtado vararam o País, em busca de adeptos e de recursos para viabilizar o jornal Opinião (e depois o Movimento), símbolo da imprensa alternativa brasileira, na fase mais dura de resistência política ao regime militar.
Antes de partir, Chico Pinto deixou patente a desilusão com rumos da política brasileira e o seu desencanto maior se voltava para "velhos companheiros de esquerda". Na última conversa que tivemos, sugeriu; "é preciso alguém para balançar a gola do paletó dessa gente e gritar: vocês querem botar tudo a perder outra vez?". Sim, ele partiu sem perder outra de suas grandes qualidades: a ironia. "Já falei tudo. Acho que agora estão vindo me buscar de vez. Sinto patadas de cavalo no coração", brincou horas antes do médico assinar o atestado de óbito.
Termino estas linhas com as palavras de Simone de Beauvoir sobre Jean-Paul Sartre na dedicatória do livro "Cerimônia do Adeus": "Para todos que o amaram e que amarão". Não encontro outras melhores para dedicar a Chico Pinto.
https://bahiaja.com.br/artigo/2008/02/24/chico-pinto-quer-falar,168,0.html