Há decênios ouço falar que é preciso democratizar o Carnaval de Salvador. E, de vez em quando, como aconteceu neste Carnaval 2008, aparecem uns espíritos "iluminados" escrevendo sobre a matéria e ditando normas e regras que são próprios de engajamentos políticos e não culturais ou da espontaneidade da festa como ela é. A rigor, diríamos assim, para democratizar o Carnaval mais do que ele já é precisa-se, também, que a democracia chegue as entidades em todos os segmentos, nos blocos de trios, nos afoxés, afros, pagodeiros, blocos de samba e de índio e assim, sucessivamente.
Não se pode democratizar só um lado defendendo a participação maior de determinadas entidades nos circuitos da folia visto que, os blocos de trio que são acusados de todos os tipos de mazelas, ao contrário do que muita gente diz e escreve, são constituídos por brancos, da chamada elite nacional, e também por negros e mestiços baianos e brasileiros. Há, a rigor, um preconceito enorme com essas entidades, como se elas fossem culpadas de tudo o que acontece no Caranval. Negativo. Carregue-se o andor dentro da realidade.
A democracia passa ao largo nas entidades carnavalescas baianas quer sejam eles de trios ou de percurssão e os exemplos estão pontuados em todos os segmentos, quer nos afoxés, quer nos afro, quer nos blocos de trios. Quase todos têm donos, salvo raríssimas exceções onde é praticada a democracia pelo voto direto. Se existe um movimento exigindo o Devolva Meu Bahia, deveria haver também um movimento intitulado Devolva Meu Bloco porque é isso que acontece e a tão propalada democratização do Carnaval deveria começar por aí.
Primeira medida impactante: o governo do Estado através da Secult só deveria liberar verbas oficiais para os blocos que fizessem eleições diretas para suas diretorias. Segunda medida impactante: a Câmara de Vereadores deveria votar uma lei proibindo (ou restringindo) o uso de balões e outros adereços comerciais (inclusive do governo do Estado) nos desfiles dos blocos. Alguém já viu a Mangueira ou a Portela desfilando no sambódromo do Rio com balões do Bradesco ou do Credicard? Mas, na Bahia tudo pode.
Este ano aconteceu a liberação de verbas para as entidades mais pobres e médias com critérios estabelecidos numa suposta identidade com a matriz africana, como se Salvador fosse a África. Ora, isso não tem nada de inovador nem democrático como se quer supor, uma vez que esse tipo de ajuda já vem sendo dado em carnavais desde a época do finado Otávio Mangabeira. Inclusive, teve determinado momento da história política baiana que algumas entidades recebiam recursos da Emtursa e da Bahiatursa, porque os governos eram de partidos distintos.
Democratizar o Carnaval passa, portanto, por medidas simples: eleições diretas nos blocos, restrição ao uso de comerciais pelas entidades, critérios estabelecidos pelo Conselho do Carnaval para horários dos desfiles nos circuitos, obrigatoriedade no relacionamento com a cultura, utilização de artistas famosos para puxarem a turma da pipoca e taxação rigorosa nos exploradores da festa. No mais, o Carnaval anda sozinho e sua espontaneidade é traduzida nos trios, nos afros, nos afoxés, nos grupos independentes, no samba e nos elementos tradicionais expostos nos últimos anos com mais intensidade no Circuito Batatinha, do Pelourinho.
Veja o que aconteceu este ano, por exemplo, em relação a cultura. Salvador foi palco da chegada da família real portuguesa em 22 de janeiro de 1808 e subsequente fixação da Corte no Rio de Janeiro por 13 anos, feito que modificou para sempre a História do Brasil. E daí? Não se viu um bloco, uma cantora ou cantor de trio, um afoxé, um grupo de samba, nada, homenagear uma data tão significativa com todos os adereços que ela permitiria. Coube ao Rio de Janeiro, com as escolas de samba tão criticadas aqui na Bahia fazerem essa reverência. Nesse aspecto, o Rio deu uma lição a Bahia, assim como o faz Pernambuco.
Outro exemplo aconteceu com a capoeira, tema oficial do Carnaval. Salvo o bloco de Tonho Matéria e grupos de capoeiristas que já atuaram em outros carnavais, como é o caso da turma da capoeira do Malê, nada aconteceu. Zero. As artistas e os artistas midiáticos se apresentaram com cada maluquice ambulante de dar pena, ou com muitas plumas e penas, e os grupos afros se dedicaram, como sempre fazem a reverenciar a África, ainda que ninguém tenha comentado nada da guerra civil do Quênia.
A capoeira é a mais difundida manifestação popular da cultura baiana no mundo ocidental e até no oriental. Tem grupos de capoeira atuando nos Estados Unidos, no Canadá, na América Latina, na Europa, na Coréia do Sul, no Japão e, a essa altura dos acontecimentos, até na República da China. E o que aconteceu no Carnaval? A capoeira foi engolida pela Kibon, pela Nova Schin, pelo Sabão Brilhante, Itaú, Vela, Bradesco e assim por diante. E até pelo governo do Estado com seus balões igualmente poluidores.
A poética neste Carnaval então foi de dar dó. De chorar. Há, não sei se propositadamente, um afastamento dos grandes compositores da festa, e o que se viu, a exceção de alguns blocos afros que ainda apresentaram composições razoáveis, porém, quase sempre engajadas num canto lamentoso da africanidade com letras muito extensas, o que se passou, no geral, foi de uma mediocridade infinita. Não dá nem para exemplificar o que se salvou do naufráfio poético de 2008.
Então, o Carnaval de Salvador tem uma safra enorme de grandes artistas, está organizado estruturalmente, a mercantilização é um fato consumado, a camarotização idem-idem, neste caso com um patrono que é ministro da Cultura do Brasil, e só precisa ser redesenhado no seu aspecto legal. E, para tanto, o Estado e a Prefeitura, através de suas casas legislativas podem dar uma grande contribuição. Não podem fazer tudo, senão acaba a espontaneida. Mas, já que virou um grande negócio, precisa ser regulamentado de forma a que todos participem democraticamente.
https://bahiaja.com.br/artigo/2008/02/05/a-democratizacao-e-a-poesia-no-carnaval,164,0.html