20/06/2020 às 10:31
LEMBRANÇAS E ADEUS AO PENA DE AÇO! , POR OLIVIA SOARES
Cremação do corpo de Joca será nesta sexta-feira, 19
Fui dormir ontem com um telefonema do jornalista Nestor Mendes Jr., em que me informava que o radialista Mário Kertész lhe comunicara que o jornalista e escritor João Carlos Teixeira Gomes, Joca Pena de Aço, acabava de se despedir da vida. Perguntava-me se eu já soubera.
Hoje, acordei, com a confirmação deste tristíssimo acontecimento: o extraordinário Pena de Aço se havia ido definitivamente.
Na quarta-feira, ante notícia apressada que circulou pelas redes sociais, o jornal A Tarde, do qual Joca foi um de seus mais notáveis e respeitado articulista, procurou-me para que emitisse uma declaração sobre o grandioso jornalista, para compor o conteúdo de reportagem, que estaria em preparo, no caso de acontecer o pior, desde que havia informação de que o quadro de saúde dele piorara, na terça-feira assustadoramente.
Pedindo licença ao jornal, transcrevo abaixo o que enviei para o repórter Eugênio Afonso, compreensivelmente longo, a que daria o título de ADEUS, PENA DE AÇO, se o escrevesse hoje (não sei se na notícia fúnebre de hoje foi aproveitado).
Ilustro com uma foto, em que aparecemos eu, Joca, Calasans Neto, com outros da Geração Mapa, em peraltice noturna de inícios de 1960.
DEPOIMENTO AO JORNAL "A TARDE"
A minha relação de amizade com Joca (João Carlos Teixeira Gomes) se forjou em duas frentes: a do jornalismo e a da literatura. Começamos pela literatura, ambos como integrantes da chamada Geração Mapa, que, sob a liderança de Glauber Rocha, funcionou como um dos marcos da era de avanços culturais que aconteceram na Bahia, a partir da reforma da Universidade da Bahia, sob a batuta do reitor Edgar Santos, ao longo das décadas de 1950 e 1960. Conheci-o ainda no tempo em que o grupo inicial liderado por Glauber levava a série de espetáculos de poesia teatralizada, sob o título de “Jogralescas”, no auditório do Colégio da Bahia (depois Central), nos anos de 1956 e 1957, ele estudante secundarista e eu, já universitário, causando uma revolução no meio seletivo cultural baiano, pela novidade da poesia moderna declamada com impulso vertiginoso.
A identidade inicial centrou-se no interesse por literatura, poesia, artes plásticas, teatro, cinema e jornalismo, por onde trilharam os membros daquela luminosa geração. Tudo se desenvolvia pela ideia de companheirismo de que eram possuídos os seus membros, desde reuniões em hall de faculdades, presença em exposições de arte, sessões de cinema, até encontros em bares, cantinas e boates. Em todos esses campos da cultura os membros da Geração Mapa brilhavam, eram admirados, seguidos, elogiados e imitados.
E Joca era um dos luminares do grupo, pelo tanto de inteligência, conhecimento cultural e literário e qualidade da escrita, como poeta e ensaísta, tornando-se, depois de Glauber Rocha, a expressão máxima da Geração Mapa, pelo futuro que, já nos tempos das Jogralescas, se desenhava no seu desempenho e atitudes. Quando começou a publicar livros quase em série, de poesia e ensaios, a admiração por sua criatividade e espírito altamente sensível cercou-se de uma multidão de admiradores de sua lavra poética, literária e cultural. Além disso, o sentimento de camaradagem eleva-se também como um dos traços de sua personalidade, sempre inquieta, perscrutante, decidida e ativa, qualidades que lhe delineavam a figura de homem sério e honesto.
Foi por aí que a nossa amizade floresceu, mas alicerçou-se ainda mais quando nossas vocações desaguaram no jornalismo impresso. Ambos já estudantes de Direito, começamos como repórteres iniciantes na redação do hoje extinto “Jornal da Bahia”, que se preparava para a fundação em meados de 1958, produzindo números Zero, ao lado de Glauber e dois outros amigos geracionais, Paulo Gil Soares e o gravador Calasans Neto (Calá), tendo como mestres jornalistas do quilate de João Batista de Lima e Silva, redator-chefe, Ignácio de Alencar, secretário de redação, e Ariovaldo Matos, chefe de reportagem, além de outros grandiosos nomes da profissão.
E aí pareceu que, para nós, eu e ele, se descortinava um horizonte de expectativas e vontades, capaz de tornar o jornalismo uma fatalidade para toda a vida, especialmente no caso dele, que, ao longo de carreira vitoriosa, de repórter de geral, evoluiu para o desempenho de altos cargos, culminando para encerrá-la no seu posto mais alto, o de redator-chefe do “Jornal da Bahia”, no qual tive a honra de ser um de seus comandados, mas dele se afastou sem largar o exercício da escrita em que se revelou um exemplo, ao produzir artigos para vários veículos impressos, com uma tal firmeza de intensidade e espírito de combate contra atos, posturas e desvios maléficos de muitos para a sociedade, que acabou por alcançar o codinome de “Pena de Aço”, de que ele muito se orgulhava por força de caudaloso reconhecimento, a fulgurar como um prêmio na profissão.
Fortalecida pela sinceridade, fidelidade e gestos comuns de admiração e respeito, a nossa amizade frutificou, chegando a essa altura à soma de nada menos que 64 anos, sem nenhuma mancha de ordem moral, profissional e intelectual, o que muito me orgulha e engrandece. A prova disso é que, bem antes do acidente de saúde que sofreu em São Paulo, que lhe atormentou e fragilizou a vida, escrevi um soneto, a ele dedicado, e entreguei em suas mãos, pelo transcurso de seus 80 anos de idade na noite de 9 de março de 2016, quando coincidentemente ele lançava, na Livraria Cultura, mais um de seus celebrados livros, escrito que sem imodéstia reproduzo abaixo.
SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS
(A JC Teixeira Gomes, no dia dos seus 80 anos – 09/03/2016)
Florisvaldo Mattos
Cansei-me de pensar no que era o dia,
Se ele entre dois crepúsculos se evade.
Cansei de me perder nessa agonia,
Fosse hora calma, fosse tempestade.
Juntei a vida inteira os Elementos
E a cada um dispensei olhar de justo.
Se regem mundos, regem os momentos,
Não conseguem parar o sol injusto.
A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses
Que governam e nutrem a Humanidade,
Como me adverte o oráculo de Elêusis.
Não podemos mudar de itinerário.
Ao fim nos resta uma única verdade:
O nosso cabedal é o calendário.
Texto de Florisvaldo Mattos
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