14/05/2020 às 11:19
A MORTE E A MORTE DE FLÁVIO MIGLIACCIO!, por SÉRGIO SÃO BERNARDO
Sérgio São Bernardo é advogado e ativista cultural
Estávamos ali, eu e meus irmãos, próximo ao Restaurante Astúrias, que vendia um quibe gostoso de se comer, bem perto da entrada do Taboão. Nesse tempo, a Baixa dos Sapateiros vivia uma grande reforma para a melhoria do esgotamento sanitário que se misturava ao Rio das Tripas, que atravessava aquela imensa avenida e que já não vendia tantos sapatos para calçar os pés da gente baiana.
Vendíamos bijuterias a preços populares e precisávamos gritar bem alto para o freguês nos ouvir e comprar os souvenires da época. Num desses momentos de frases soltas de marketing público dos empreendedores sociais de caráter público, vulgarmente chamados de Camelôs, as vozes dos quatro meninos, confundiram-se com uma voz robusta e altíssona, de um vulto que corria estabocadamente e, com muito mais vigor que as nossas conjuntas vozes, assim sentenciava:
- Quincas Morreu! Quincas Morreu! Quincas Morreu...
Toda a plateia e todo o povo da Bahia revirou sua atenção para aquele sujeito vestido com um paletó velho e malamanhado, a correr desafiadoramente por entre as pessoas, a noticiar a morte do velho boêmio baiano Quincas Berro D’água. De súbito, pega nos ombros de Sinho e diz: Quincas Morreu! Quincas Morreu! Só depois que assistimos ao filme, antes mesmo de ler o livro, soubemos que se tratava de um dos grandes amigos de Quincas, o Mestre Curió.
Estávamos nos idos de 1978, eu, Nem, Sinho e Caco. Olhávamos com espanto e admiração as gravações da série que a Rede Globo fazia, inspirada na obra de Jorge Amado, sobre o seu livro, do mesmo título, A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água.
Entre a labuta da vida, a labuta da arte e a labuta da morte, tínhamos fisgado ali um instante profundo de significado existencial que nos marcaria para toda vida. Tínhamos sentido as imagens de um filme sendo gravado com atores famosos que povoavam a nossa infância. Lembro-me que tínhamos assistido a Shazan e Xerife com a participação de Migliaccio.
Ali, o que menos demos atenção e que, hoje, teria sido o mais impactante, talvez, fosse a obra de drenagem, pavimentação e tamponamento do Rio das Tripas. Todavia, os corações barrocos dos quatro meninos preferiram ficar com a imagem da guia, com as peças à venda, a ilustrar a obra magnifica por cima do rio. Com a presença cênica da arte mágica do cinema por cima dos tapumes de contenção, a se comunicar com a maestria das ruas, através das vozes dos meninos da Baixa dos Sapateiros. Isso tudo nos motivou a vida que vencia os dias e que nos deram a poesia que carregamos em nossas veias até hoje.
Migliaccio iniciou sua carreira encenando a morte na peça “Julgue Você” em 1956, passou toda sua vida a nos encantar protagonizando ensinamentos de vida e resiliência, que hoje nos servem para estes momentos de ódios pandêmicos. Migliaccio se matou afirmando que a humanidade não deu certo e pede para cuidarmos das crianças! A pior das mortes é aquela que vivemos desistidos da vida.
A arte vai zombando da morte e vai nos treinando a repetir as mortes em vida. No meio da confusão, ouviu-se Quincas dizer: “Me enterro como entender. Na hora que resolver. Podem guardar seu caixão pra melhor ocasião. Não vou deixar me prender em cova rasa no chão.” E foi impossível saber o resto de sua oração. “— Jorge Amado, do livro A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água.
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