Guardo ainda, não me perguntem pra quê, o número zero e algumas edições primeiras do Bahia Hoje, diário impresso (1993/94) bancado pelo empresário basco Dom Pedro Irujo, que revolucionou o jornalismo baiano pelo avanço tecnológico, à época – todo o processo era informatizado, algo pioneiro, e uma nova proposta editorial. Funcionou no Rio Vermelho, bem perto da entrada para o Nordeste de Amaralina.
Fui pra lá ainda na fase de implantação, treinamento e formação de equipe, a convite de Tasso Franco, o ‘comandante’ do projeto, que me escalou como Editor de Cidades, espécie de chefia de reportagem local. Conhecia a área, doutras vivências e redações, mas o Bahia Hoje era um desafio. Topei de cara porque confiava em dois profissionais respeitados e pessoas decentes, que eram Tasso e o Editor Chefe Otto Freitas; os conhecia desde os começos dos anos 70, na Tribuna da Bahia, jornal também inovador, boa escola à época.
O primeiro grande desafio era montar uma equipe de reportagem com gente nova, saindo da faculdade, pessoal qualificado, com fogo e sem vícios. Uma turma empolgada com o puro jornalismo, sonhávamos. Sei de cor, sem precisar consultar papéis: Hilcélia, Andréia, Luciana, Ana Paula, Mariana, Gabriela Rossi ... Gonçalo, Alexandre, Uzel, Maurício, Gutemberg ... E tinha a editoria de esportes, de política, economia, polícia... a coluna de Arthur Andrade, a equipe de fotógrafos, com Rogério, Shirley, Sora começando ...Cauh Gomez e Flavio Luiz fazendo artes...
Uma redação sem papel, sem o barulho dos teclados e do espaçador das máquinas datilográficas, sem fumaça de cigarro no recinto, sem berros, só computadores em rede, programas, sistemas, outro mundo; readaptações até no modo de ver a notícia, de pensar a página, novas linguagens, comportamentos, muitas novidades.
Imaginem a angústia dos ensaios e experimentos até o dia de rodar pra valer o número zero, a inauguração oficial, o jornal em cores e em novo formato nas ruas, ufa ! Dias de tensão, muito papo, erros e acertos, pouco sono.
Gosto de lembrar do exercício diário do fazer em conjunto, a discussão da pauta com os repórteres, a busca do enfoque/abordagem mais correto, o que foi apurado na rua, o que tínhamos, a busca do ‘lead’, uma boa abertura, o texto enxuto e na medida proposta para o encaixe nos novos padrões de paginação/diagramação pré-estabelecidos. Puta desafio, então, a edição da página, o título no tamanho exato, a escolha da manchete, dos assuntos mais relevantes do dia, a reunião para o fechamento da primeira página – o que tínhamos? O que cabia chamadas na primeira?
Nunca antes havia trabalhado com computadores. Fechava páginas no Jornal da Bahia, por exemplo, em 45minutos (eu era rápido) ao lado de Diana Tourinho, Isabel... na base do lápis, do desenho, das réguas de cálculo e medição do espaço, as tais picas (paicas)... e agora, de repente, nós e a telinha: os modelitos de página com os espaços definidos de fotos, títulos, apoios, legendas, tipos de letras ... a escolher e ‘aplicar’. Com o dia a dia, o traquejo, cheguei a fechar página em 12 minutos, vejam o ganho, a diferença, e a ‘mais valia’.
Um aprendizado e tanto. Mudanças de paradigmas. Reestruturação do pensar, planejar, projetar e no fazer. Não foi nada fácil, mas aprendíamos juntos, nos ajudávamos em cada passo. E, a despeito das dificuldades, das travações do sistema, da agonia com o tempo de fechamento, dos limites humanos de cada um de nós, fizemos muita coisa bonita, inovadora e interessante. Belas páginas, boas matérias, títulos adequados, textos bem trabalhados, bom jornalismo sim.
Gostávamos do que fazíamos e havia na nossa equipe uma relação de afeto, um querer bem mais que um simples companheirismo. Isso até provocava um certo ciúme, aqui e ali. Sentiríamos isso mais adiante, depois de algumas mudanças de nomes nos comandos.
Com a máquina já azeitada, o jornal repercutindo e vendendo bem, começaram os problemas: promessas de patrão não cumpridas, salários defasados, a saída de Tasso Franco (desentendimentos com Irujo) que era uma referência, depois a saída de Otto, a (má ) gestão de um certo Dr Balazeiro que desconhecia a redação, nada entendia de jornalismo, era preconceituoso, ruim de diálogo e queria mandar...
E uma disputa interna de poderes na redação, com gente mais ‘politizada’, mais ‘militante’ ocupando chefias e o ambiente foi-se modificando. Travei, caí fora. Nunca curti trabalhar em ambientes hostis, de disputa. Acho que pulei do barco na hora certa.
Logo depois seguiria para Fortaleza, a convite de Geraldão (o saudoso publicitário), a trabalhar na campanha de governo/Ceará de Tasso Jereissati/94. De lá fiquei sabendo das demandas, da greve, das demissões em massa, do fechamento do jornal, do fim muito cedo de um grande projeto. Senti muito.
Certa feita, anos depois, topei numa solenidade com o Dom Pedro Irujo, com quem sempre me relacionei bem, apesar de uns dois arranca-rabos (na TV Itapuã, em 1982/83) e no próprio Bahia Hoje, sem ofensas. Cobrei educadamente dele, tom de brincadeira: - Mas Seu Pedro, como o Senhor deixou morrer o Bahia Hoje? E ele me respondeu, com aquele sotaque único: - Foi o Antonio Carlos, Barreto, foi o Antonio Carlos. O dito era o Governador, mui amigo e desafeto do Basco.
Houve um tempo na Bahia que era assim: tudo de bom ou de ruim que acontecia era coisa de ACM. Foi assim.
https://bahiaja.com.br/artigo/2017/11/09/memoria-do-bahia-hoje-1993-zedejesusbarreto-da-seu-depoimento,1062,0.html