Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA O LIVRO FALA NEGÃO, UM DISCURSO SOBRE A IGUALDADE

Uma trajetória dos movimentos negros em Salvador e sobretudo do Olodum
23/09/2021 às 11:00
    João Jorge Santos Rodrigues é mestre em direito pela UnB e presidente do Olodum. Dois títulos importantes em sua trajetória de vida para um menino que nasceu no Rio Vermelho e foi criado na Rua do Bispo, centro histórico de Salvador, bisneto de escrava proveniente de Gana e que adotou como príncipio básico de sua atitute perante a sociedade lutar por uma vida melhor para os negros da Bahia e do Brasil.

   A matriz é Salvador e a sede desta mãe-negra é o Olodum, entidade cultural e artística que nasceu como bloco carnavalesco no Maciel de Bahia, em 1979, numa época em que o local era centro da prostituação. Hoje, é um simbolo internacional do Brasil com apresentações em 34 países e a marca de ser o único na América do Sul ao participar de uma apresentação com Michael Jackson.

   Mas não foi uma apresentação qualque e sim uma composição artística e política sob a direção de Spike Lee e a participação de 215 percussionistas, Jackson, o menino do Jackson Five, adulto, maior astro pop mundial, usando a camisa do Olodum e cantando "Don't Care About Us", em 1996. A ligação de Lee com o Brasil vinha de 1991 quando conheceu o Olodum excursionando nos EUA com Paul Simon. O vídeo com Olodum/Jackson já ultrapassou a marca de 600 milhões de visualizações, 3 vezes a população do Brasil.

   Essa e outras histórias os leitores poderão acompanhar no livro intitulado "Fala Negão" (produção do Grupo Cultural Olodum em co-edição com a Fundação Casa de Jorge Amado, patrocinio IbraChina, 2021, 275 páginas) em que João Jorge conta a ascensão do Olodum, a sua luta como militante do movimento negro, o racismo institucional, a liberdade e o apartheid ainda existente em Salvador e muito mais coisas.

   É um livro básico que o autor classifica como um "discurso sobre a igualdade" e reúne falas no plenário da Câmara de Salvador, no dia da África (OAB), Centro Latino Americano EUA, Flórida, etc, e entrevistas e artigos publicadas neste Bahia Já e em outros veiculos de comunicação - Blog Olodum, A Tarde, Correio, Jornal Olodum, Veja, etc - contando toda a sua trajetória de vida e sobretudo essa fase mais adulta, mais à frente do Olodum, que é um farol, uma luz que ilumina caminhos. 

   O Olodum tem duas fases distintas em sua existência e vários movimentos de evolução do pensamento ao longo dos seus anos. A primeira fase - carnavalesca pura, mas, ato de rebeldia inconsciente ou não nasceu em 1979, no Maciel de Baixo, quando sete negros - Geraldão, Nego, Vô, Gordo, Zé Luis, Carlinhos e Bobô - acompanhados de um pequeno grupo de percurssionistas desfilaram no Pelourinho e adjacências com o bloco 'Olodumaré'; a segundo fase dá-se a partir de 1983 com uma nova geração à frente da entidade, Cristina Rodrigues - presidente - o nome Olodum (em iorubá, a criação, o momento da criação) e a presença de João Jorge vindo do Ilê Aiyê para politizar o movimento.

   Para chegar a esse grau de conscientização foram muitos passos nesses quase 40 anos todos firmes e resolutos visando combater o racismo, por fim ao apartheid, elevar a autoestima das comunidades negro mestiça (80% da população de Salvador), integrar todas as raças e etnias - pretos, brancos, tupinambás, pardos, mestiços, sararás, etc - e lutar pela igualdade. 

   João Jorge entende que esse é o ápice, praticar a igualdade, e, para tanto é preciso conjugar duas forças que se completam nesta luta, a cultura e a política. A igualdade, pois, está acima do apartheid, além do racismo, a pós-modernidade, o negro também no centro do poder ajudando a administrar as cidades, os estados e o país.

   Diz JJ: "Hoje, por exemplo, há muitos setores da sociedade que não veem cultura e política como coisas distintas, ao contrário, veem como síntese de um novo pensamento, de uma nova forma de fazer: o Olodum é uma boa referência disso. O Olodum é um grupo político cultural, se expressa politicamente, mas faz, acima de tudo, atividades dentro do ambiente cultural, e isso foi uma forma interessante, nova e criativa de se chegar a milhares de pessoas no país inteiro, passar a ideia de um grupo, mandar uma mensagem, de conscientizar as pessoas, mesmo que a cidade (do Salvador) não tenha mudado como gostaríamos".

   Vê-se, assim, uma evolução do pensamento dentro de um grupo que se inicia num ambiente de prostitução, mas, também, um local onde havia famílias estruturadas, consciente de um novo papel que tinham que assimir na comunidade Salvador, ainda sem uma organização, num trabalho diuturno que foi evoluindo aos poucos com muita luta, confrontos com as forças de seguranças do estado - membros do Olodum foram baleados pela PM, outros agredidos - embates com partidos políticos, reuniões na casa da negra Alaide do Feijão (a bancada do feijão), a ajuda pionera de Martins, de Lazinho e de tantos outros do MNU, numa leitura que foi se aprofundando com o decorrer dos anos.

   O livro de João Jorge mostra todo esse caminho incluindo a citação de Jesus Cristo mestiço, real, e de autores negros que mudaram a forma de pensar no mundo africano desde Abdias Nascimento a Nelson Mandela, Desmond Tutu, Cheikh Ana Diop, Aogstinho Neto, Frantz Fanon, Haile Selassie, entre outros. 

   E se dedica e se fixa mais nos exemplos da Bahia e do Brasil, a Revolta dos Búzios por um novo pensamento de liberdade ainda no final do século XVIII com a execução de heróis nacionais na Praça da Piedade - João de Deus, Manuel Faustino, Lucas Dantas e Luis Gonzaga das Virgens - os quilombos, os quilombolas, Zumbi dos Palmares, todo um caldo de cultural  que está sendo revisto a luz da história com novas informações e mais realismo ao que sempre se ensinou na história brasileira herdada com seus vicios coloniais. 

   "Fala Negão" é um aprendizado ainda que não exista uma sequência lógica temporal e assimétrica no livro. Talvez, por isso mesmo, exija dos leitores e leitoras mais atenção porque algumas citações são repetidas observando-se cada contexto, cada época, o que também torna mais prazerosa a leitura. 

   O autor usa uma linguagem coloquial o que facilita bastante a compreensão do que está nas páginas do livro, sendo o mais importante, no cômputo geral, a mensagem de evolução do pensamento da comunidade negra a partir dos movimentos realizados pelo Olodum. Óbvio que não são únicos nem se esgotam numa edição. Outras entidades e pessoas podem (e devem) dar novas contribuições ao que já foi publicado até agora.

   O livro de João Jorge é, também, um estímulo nesta direção. Quanto mais publicações sobre esse pensamento organiza-se uma biblioteca sobre o movimento negro na Bahia o que representa, em síntese, o Brasil.