Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ENTRE ANJOS E CANGAÇOS, a foto e o cinema no NE

Livro de Frederico Pernambucano de Mello é primoroso e revela as aventuras do sírio que documentou o cangaço no Brasil, em fotografia e cinema
21/04/2013 às 18:31
 Poucos livros já lí com tanto interesse sobre o Cangaço quanto o trabalho de Frederico Pernambucano de Mello sobre a trajetória do turco Benjamin Abrahão, fotógrafo e cinegrafista do bando de Lampião, de outros bandos, do padre Cícero Romão e de paisagens do sertão brasileiro.

   Sempre tive imensa curiosidade sobre o personagem Benjamin Abrahão y de como ele teria conseguido se aproximar do bando de Lampíão, primeiro e único fotógrafo-cinegrafista a desfrutar dessa intimidade, ainda mais sendo estrangeiro e sem conhecer os costumes do Brasil dos anos do cangaço (1920/1940), do coronelismo e da lei onde imperavam a bala e o punhal.

   Em "Entre Anjos e Cangaços" (Editora Escrituras, 347 páginas) o obstinado professor e pesquisador pernambucano Frederico Mello matou essa minha curiosidade e de milhares de brasileiros, certamente, acrescentando a essa expectativa  uma primorosa documentação e descrições do momento político vivido naquela época, o que sempre é pouco ou quase nada relatado nos livros sobre o Cangaço, salvo exceções, os quais, regra geral, se apegam mais aos aspectos dos tipos nordestinos, às vezes folclóricos (hoje, cangaceiro virou uma marca, um marketing do NE) que cuidam mais dos ícones típicos, em sí, e de algumas passagens do coronelismo sem se deter nos aspectos sócio-politicos. 

   Ainda assim, mesmo em narrativas simplistas (e o cordel também serviu como difusor dessa cultura), implicitamente, mesmos os mais modestos textos descritos desse momento da vida nacional tratassen dessa sociologia popular, na medida em que comentam sobre o homem sertanejo, indumentárias, pobreza, fome, paisagens e assim por diante.

   Como é muito extensa a bibliografia sobre o Cangaço e tenho lido compêndios esparsos ao longo dos anos, sem deter-me com mais interesse sobre este tema, "Entre Anjos e Cangaços" deu-me a sensação de que se trata de uma obra com uma abordagem completa sobre o assunto, uma vez que o autor, aproveita-se do personagem principal do ensaio, o aventureiro Abrahão, destemido, ambicioso, quase um louco, para enfrentar um ambiente inóspito à sua realidade asiática, e se aproveita dessa peregrinação e conduz o leitor pelas trilhas dos sertões, o ambiente politico em especial, e narra entre outros compadrios e acertos entre Lampião e o poder dominante.

   Narra, por posto, como Lampião e seu bando foram convocados para participar do combate à Coluna Prestes, por inspiração do poderoso médico e político baiano que dava ordens nos sertões do Ceará, Floro Bartolomeu da Costa, o qual, a serviço do Poder Nacional enxerga Prestes como uma ameaça de comunização do país, o que era, também, de desagrado do coronelismo.

   "Ao se apresentar tardiamente no Juazeiro a 4 de março, à frente de meia centena de cabras, Lampião causa o maior reboliço. Tardiamente, sim, porque o grosso da coluna havia deixado o Ceará para trás a 4 de fevereiro. Lampião impressiona a todos no Juazeiro. Pela cor, pela calma, pela juventude, pelos modos educados, pela cautela obsessiva. Olhar bailarino, girando em todas as direções", pincela o autor. 

   Há, portanto, no livro, descrições de todo um jogo politico na República Velha e Abrahão, inteligente e sagás, se insere dentro do messianismo do padre Cícero Romão para também se tornar um personagem daquela saga romeira em Juazeiro do Norte, Ceará, sendo além de fotógrafo um conselheiro do padre e herdeiro de seus bens doados pelo povo do Nordeste.

   O livro de Frederico Pernambucano de Mello é envolvente, de enorme prazer de leitura a cada capítulo, uma aula de história sobre a Velha (senhora) República, a briga pelo mercado de filmes das primeiras multinacionais no país, a chegada da Zeiss alemã no Nordeste, as imagens associadas ao nazismo da Bayer e Cafiaspirina, um caldo de cultura fantástico que desemboca na represssão getulista, depois aliado do coronelismo, e na morte (assassinato) de Abrahão, quando Lampião já estava morto e o ciclo do Cangaço definhou.

   Como de antemão o leitor é informado que o sírio fora assassinado vai tendo uma curiosidade enorme em meados e final do livro para saber como isso se processará e o autor, perspicaz, reserva para o último capítulo esse suspense sem revelar os detalhes subsequentes do assassinato, mas, deixando claro a força dos mandantes.

   "Como é possível um estrangeiro, um árabe vindo não se sabe lá de onde, fazer tanto reboliço no sertão, a ponto de irritar o Catete e atrair sobre sí e censura do governo federal", eis a questão, o âmago da morte do sírio. 
São esses dois mundos que Pernambucano de Mello traz ao olhar do leitor, a vida desse árabe que impressinou o sertão se dizendo conterrâneo de Jesus para abrir as portas da boa fé de Cícero Romão, o patriarca messianico de Juazeiro, e daí chegar até Lampíão e abrir uma janela para a fotografia e o cinema no Ceará e em Pernambuco nesses anos de punhal e mosquetão. Produziu a mais representativa fogorafia da morte do padre Cícero (Ciço) e das representações do cangaço que o imortalizaram para sempre.

     Toda essa documentação em p&b e na cinematografia (Aba Film), a briga pela conquista do mercado entre o produtor alemão Zeiss e os norte-americanos,  representam um grande legado desse aventureiro do outro lado do mundo. Se tivesse sido mais cauteloso e menos impetuoso em suas ações, vivido mais tempo, poderia ter dado uma contribuição muito maior a essa história brasileira, época em que também floresceu com a ajuda do poeta Ascenso Ferreira a Vaquejada, uma relação do vaqueiro com a cidade, também documentada por Abrahão.

   Para quem possa achar que é pouco, eis, pois, os feitos notáveis de Benjamin Abrahão: documentárias do cangaço, da vida e morte do padre Cícero e da primeira vaquejada do país.