Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

A confissão da leoa, de Mia Couto, drama das mulheres de moçambique

As páginas finais, quando a tribo se reúne para o kuiola liu são emocionantes
24/03/2013 às 19:58
(O murmúrio de uma moça bonita ouve melhor que o rugido de um leão - provérbio árabe)

   Eu nunca tinha lido um trabalho do escritor Mia Couto, o moçambicano autor de "Terra Sonâmbula" y "O Último Voo do Flamingo". Deparei-me, em boa hora, com o livro "A Confissão da Leoa" (Companhia das Letras, 251 páginas) e confesso que gostei muito não só porque o autor narra o texto em primeira pessoa, o que é mais difícil em ficção (ainda que baseado numa história real) mas, sobretudo, porque desvenda uma África que a gente pouco conhece.

   Que África afinal é esta? Que África Mia Couto põe à luz e apreciação dos seus leitores?

   Mostra-nos uma África sem meias palavras, nua e crua, sem as belezas normalmente vistas em suas savanas e parques de preservação da fauna e flora, sem a permanente corrupção de seus governantes, e retrata uma comunidade em que, no seu dia a dia, enfrenta um ataque de leões a seus moradores, gente simples, com seus dramas sociais à flor da pele, revelando costumes peculiares de uma aldeia (Kulumani) em história onde pontuam relações de incesto, posessão, traíção e opressão politica e social.

   É uma África complexa em costumes bem próprios, alguns dos quais já superados pela contemporaneidade, posta numa narrativa que se passa no interior de um dos países mais pobres do continente africano (Moçambique) onde animais selvagens convivem na paisagem como integrantes de comunidades tribais e são elementos atormentadores e da convivência natural.

   Mia Couto se insere no contexto da trama com um escritor urbano, intelectual (Gustavo Regalo), apenas para acompanhar o roteiro principal que é a presença de um experiente caçador de leões (Arcanjo Baleiro) para exterminar a leoa que já havia devorado uma nativa (Silência) e visava à morte uma outra mulher, sua irmã Mariamar, a qual teria um pacto com essa leoa.

   Miramar, a louca, em essência, fora submetida a práticas de incesto com o pai, sob a complacência de sua mãe, daí ser obrigada a beber uma poção mágica de um curandeiro, sendo enviada a um hospício por ser considerada mal de espírito, depois retornando a aldeia porque nada tinha além da sedição.

   É uma história complexa e a linguagem utilizada pelo autor chama a atenção pela força das expressões locais. Couto se utiliza de termos do skimakonde, a lingua da tribo (Moçambique é ex-colônia de Portugal e a maioria de sua população se expressa em português, mas, algumas tribos do interior usam suas linguas nativas, originais), e comenta sobre a força mágica do Lideia (rio local) "que nem português fala repleto de dombes (peixes) que só conhecem seus nomes em skimakonde; cita passagens poéticas "minha mãe andara guardando estrelas" e "meu pai nadava sem nunca atravessar o infinito lago"; conceitua as crendices populares como prática de resoluções para tormentos  "tudo graças às poderosas nintelas (mezinhas e amuletos dos feiticeiros)"; e enumera descrições de  rituais que dominam a tribo no momento das caças coletivas a animais (kuiola liu) e os gritos de histeria (tuke kumuba).

   Essa parte de recheio do livro se insere no contexto para ambientar o local, a cultura de Kulamani e o poder dos feiticeiros. as supertições, a força da natureza .
O leitor vai se prendendo de tal forma na narrativa querendo que o caçador extermine logo a leoa assassina, mas, o autor, conduz o romance de forma homeopática, detalhando cada traço da cultura ancestral local, de como o caçador passa a ser também temido y adorado pela comunidade, na medida em que desvenda os temores de Mariamar com lembranças de um passado que a atormenta, do incesto sofrido pelo pai (Genipo Mpepe) mostrando a dura realidade da vida da tribo e de como a cultura machsita se personificava, com a complacência de sua mãe (Hanifa Assulua).

   As páginas finais, quando a tribo se reúne para o kuiola liu são emocionantes. E, mais chocante ainda o detalhamento da caçada aos leões, a morte de Mpepe, o escritor como guardião do caçador, a sobrevida de Mariamar e sua mudança da aldeia, e o adeus a mãe que susurra na despedida ao caçador profissional depois de cumpriada a missão de matar a leoa (animal): - Eu sou a leoa que resta. É esse segredo que só você conhece, Arcanjo Baleiro.

  - Por que me conta isso, dona Hanifa?

   - Esta é a minha confissão. Essa é a corda do tempo que deixo em suas mãos.

     O livro de Mia Couto é de primeirissima qualidade e revela todo drama das mulheres rurais de Moçambique.