Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

"DEUS FOI ALMOÇAR", romance do paulistano Ferréz, muito interessante

Ferréz é romancista da literatura marginal, gênero que criou em SP
18/11/2012 às 10:40

Diria que não é fácil entender Ferréz esse autor da literatura marginal de São Paulo, dele “Capão Pecado”, 2000, livro que o alçou ao conhecimento do mercado, neste novo trabalho editado pela Planeta, “Deus Foi Almoçar”, contendo 55 minúsculos capítulos, romance que narra a história de Calixto, um arquivista de 50 anos, angustiado, o qual após seu divórcio passa a vida a limpo, sem um Deus à vista para consolá-lo.

“Deus Foi Almoçar” é um livro de entendimento complexo. É preciso que o leitor se situe no campo de atuação de Ferréz, que é a literatura marginal, para então entender o que diz o autor, a mensagem que passa ao expor a vida de Calixto, que é também a de milhares de brasis da periferia, dos guetos, desesperançado, perdido na vastidão da grande São Paulo e sem ter como conseguir sair do atoleiro que se meteu, após o divórcio, procurando se situar no mundo contemporâneo sem dar bolas para o restante da sociedade, sem preocupação com a competitividade do mercado.

Sem essa percepção do que escreve Ferréz, ele próprio fundador do selo Literatura Marginal  e da IDASUL, ligado ao movimento Hip Hop o leitor tenderá a se perder achando que os microcapítulos são um amontoado de dissertações sem nexo, pontos de vistas de derrotados brasileiros, sem uma contextualização geral, donde se pode tirar algum proveito na concepção clássica da literatura.

 Nada disso. Tudo o que escreve Ferréz tem sentido e os capítulos vão se encaixando à medida em que, a trama segue para seu final, ainda que o leitor precise ter muita atenção na leitura para que ele também não se perca.

Creio que, para quem vive nas periferias das grandes cidades seja mais fácil entender o romance de Ferréz porque trata da própria vivência dessas pessoas e o autor deixa isso muito claro no livro, numa linguagem aberta e compreensível entre eles, “todo mundo é feliz quando come”; típica do seu cotidiano “o ônibus vazio lhe trazia uma estranha sensação, não saberia dizer se era tristeza ou alegria”; e chula “come esse cuzinho, amor, come esse cuzinho”.  

Todo esse linguajar se enquadra dentro da degradação moral do personagem principal do livro, o arquivista Calixto, competente em sua missão de trabalhador, o qual se envolve sexualmente com mulheres, como Melinda, uma senhora casada que também procura em seus braços uma espécie de porto seguro incerto para sua infelicidade.

Ferréz também usa expressões de sua trama que alfinetar a cultura de “massa” dos “caras que levam tudo a sério e que têm mania de organizar tudo, de catalogar, eu conheço dezenas de pessoas que só querem bater uma punheta com um filme (pornô) não viver estudando ele, essa coisa é igual aos gays, em vez do cara ir lá e gozar, o cara monta movimento, faz palestra, faz passeata, vive organizando isso e aquilo, então o prazer do cara vira uma porra de um serviço, sindicato, organização não governamental, quando na verdade o cara só queria sair com outro cara, viver com outro cara, que se foda, cara, tem que parar de levar tudo a sério”.

Militante de causas próprias, da linha marginal, Ferréz é contestador nato. Ferréz e seus personagens têm chãos próprios, insondáveis para os leigos, ou como diz o autor numa dos textos: “O lançamento de um livro é um rodeio de abutres louvando uma mente capaz de mentir em tão alto grau que escreve e negocia”.

“Deus Foi Almoçar”, então, não tem um começo, meio e fim no estilo clássico do romance. Tanto que você pode lê-lo do fim para o inicio e vice-versa. A compreensão do texto está no conjunto dos microcapítulos. Um exercício de leitura muito interessante. Recomendo.