Cultura

A VISÃO DE DEUS E DO DIABO NO MEU TEMPO DE MENINO, por TASSO FRANCO

Prevaleceu, entre nós, o dualismo com Deus, sendo o bem; o diabo, mal. Visão que, em parte, segue até os dias atuais
Tasso Franco , da redação em Salvador | 24/10/2020 às 08:29
Boa pergunta
Foto: SERAMOV
  O jornalista Tasso fRANCO publicou neste sábado, 24, a 27ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem" (1945/1957), Serrinha e aborda o tema Deus e o Diabo e a visão que as crianças tinham desses dois personagens da ficção religiosa. Leia crônica abaixo e as demais no wattpad.

   A VISÃO DE DEUS E DO DIABO

   Crianças na faixa etária entre 3 e 7 anos de idades não têm a menor noção dos personagens da ficção religiosa Deus e o Diabo. Menores de 0 a 3 anos, menos ainda. Estes são praticamente bebês.  Criou-se no simbolismo fúnebre a figura do anjo, anjinhos, quando o bebê morre novinho e é sepultado num caixão branco.

   A partir dos 7 anos de idade, quando íamos para a escola primária, e até completar esse ciclo escolar de 4 anos, chegando-se aos 11/12 anos de idade, aí as crianças entendiam que Deus era a personalidade do bem; e o Diabo, o ser do mal.

   Isso pelo menos era assim no meu tempo de menino. Nós, até entrarmos no ginásio, aos 12 anos, éramos extremamente mal informadas de assuntos relacionados a religião, sexo, economia, ciência, política e assim por diante. Nossa vida era limitada ao básico: brincar, aprender a ler e escrever, nunca contestar os pais e os professores e acreditar em tudo o que eles diziam e ensinavam. 

   Não tínhamos meios alternativos de informações, não existia TV nem internet, e nossas discussões nos recreios, nos babas, nas festinhas, eram sobre o seriado do cinema, os brinquedos novos que surgiam, quem estava jogando melhor do que o outro no futebol. Coisas bem comezinhas.

   Esse assunto de Deus e do Diabo era tabu. A gente foi, aos poucos, sendo informados de que Deus, o criador do céu e da terra, morava no céu e era um senhor barbudo, velho, porém saudável, e que olhava pra todos nós, uma divindade protetora. E o Diabo era a antítese, o mal, o qual morava no inferno, um lugar quente e pavoroso que os pecadores iriam para lá quando morressem. 

   A gente não conseguia visualizar Deus, mas, ao olhar para o firmamento entendia que ele morava ali, no céu, no azul. E, mesmo quando chegavam as noites, com céu azulão ou escuro, estava sempre estrelado, com luz. Só quando chovia e davam trovoadas é que as coisas de modificavam. Mas, o céu era sempre limpo, claro, ainda mais que nossa cidade era a porta do Sertão Nordeste da Bahia, com forte luminosidade do sol durante quase todo o ano.

   Sobre o Diabo, a situação era mais complicada porque a gente não visualizava o tal 'Pé de Botelho' e muitos menos o inferno. Mas, sabíamos, por dizer dos mais velhos, que era o tal lugar tenebroso habitado por vários diabos com ferrões, todos vermelhos feito fogo, prontos para castigar as almas pecadoras. 

   Essa era a imagem que possuíamos. Ninguém brincava com ele, nem no Carnaval. Hoje, vê-se muitas mulheres vestidas de 'diabinhas', mas, no meu tempo de menino, aí daquela moça que assim se fantasiasse. Não havia isso. As mulheres se vestiam de ciganas, arlequins, palhaças e assim por diante.

   Serrinha era uma cidade cuja religião predominante era a católica apostólica romana. O município era um país em território, uma Albânia. Havia a igreja matriz de Sant'Anna, na sede, as capelas do Retiro e da Chapada (Santo Antônio), e as igrejas do Lamarão, Raso (Araci), Pedra (Teofilândia), Barrocas essas 4 últimas localidades distritos que se tornaram municípios a partir dos anos 1960 até 1990. 

   Vê-se como era difícil para o padre orar suas missas em território tão vasto embora os conceitos de Deus e do Diabo e a adoração aos santos fossem propagadas pelos diáconos.

   Na sede, em Serrinha, na Casa Paroquial, ministrava-se catecismo para os filhos (as) dos (das) católicos (as) praticantes. Como meu pai era espírita e minha mãe católica não praticante eu não alisei esses bancos teológicos e o meu saber de Deus e do Diabo era da prática do dia-a-dia, mas, nem eu nem meus colegas dávamos muita atenção a essas questões. Meninos não têm pecados e estávamos salvos de quaisquer situações.

   Só a partir de 1923 que o culto evangélico se instalou na cidade após dissidência de um ardoroso católico que brigou com o padre Carlos Ribeiro, José de Lima Coutinho, o qual fundou a Primeira Igreja Batista. Os fiéis eram poucos e só cresceram a partir dos anos 1940 quando o mesmo Coutinho fundou a Evangélica 15 de Novembro na Rua da Estação.

   Já o culto ao espiritismo institucionalizado nasceu em 1946 quando eu tinha 1 ano de idade com a inauguração do Centro Deus Cristo e Caridade frequentado por um pequeno grupo de abnegados espíritas, entre eles, meu pai (Bráulio Franco, orador oficial) e Antônio Profeta. Eram poucos adeptos, os quais, eram considerados hereges pelo padre. 

   O candomblé era praticado pela família Carvalho, de Mané Perna Torta, numa roça (axé) situada ao lado da atual Estação Rodoviária. Toda essa área da BA que liga Serrinha a Coité era formada por sítios e fazendas, com a estrada federal passando mais embaixo, no atual bairro da Cidade Nova, transversal Sul/Norte.

   A visão de Deus e do Diabo até minha adolescência continuou sendo a cristã. Como se sabe, o Homem Sapiens está na terra há milhões de anos e ele eliminou os Homens Rudolfenses e Neandertalensis. As civilizações depois do homem coletor-caçador, surgiram em torno de núcleos agrícolas estáveis há 12 mil anos, em volta da domesticação dos bodes e da cultura do trigo. 

   Até então a cultura religiosa era politeísta. O homem cultuava deuses de todos os tipos - do sol, da lua, do ano, da chuva, das águas, dos trovões, da prosperidade, da fertilidade, da bonança, etc. Calcula-se em torno de 5000 deuses. Muitos desses deuses eram personificados em animais - águias, serpentes, cavalos, vacas, peixes, elefantes, tigres, dragões, bodes, galos, etc - e objetos e formas - raios, árvores, flores, cachoeiras, rios, etc. 

   No candomblé ainda é assim. Olorum é o criador do céu e da terra. O culto precisa de uma roça, de mato, de plantas ou árvores sagradas. Não havia, como não há, as figuras de Deus e do Diabo, essa dualidade, esse embate do bem contra o mal.

   Com o advento formal do cristianismo com o imperador romano Constantino, 300 anos após a morte de JC, e depois com o islamismo, 600 anos d.C., religiões mais praticadas no mundo, foi que surgiram essas duas figuras e, mais, no caso do catolicismo, os santos. No islamismo, no entanto, a figura de Deus é representada por Alá, todo poderoso. O profeta Maomé ao se encontrar com o anjo Gabriel (Jibril) traçou as diretrizes do Islã e escreveu os fundamentos do seu livro sagrado o Alcorão, versão inalterada e iluminada de Deus. 

   O satã para eles são os EUA, o grande lucifer. O islamismo tem uma cultura diferenciada da cristã uma vez que, mesmo praticando-se um ato de terrorismo matando pessoas, aquele que o pratica em nome de Alá de uma causa purificadora, vai pra o paraíso celestial.

   Já o budismo, de Sidarta Guatama, nascido antes do cristianismo (Buda significa o iluminado), a figura de Deus é um ser humano e a lei é a dharma, o sofrimento surge do desejo. Há vários panteões até se atingir o nirvana. O budismo não nega a existências de deus que trazem a chuva e vitórias, mas, não tem influência alguma no dhrama. 

   Já o confucionismo (China) de Confúcio nascido de princípios filosóficos de Kung-Fu-Tsé, 600 anos a.C, tem como núcleo a humanidade (Ren). Trata-se de uma doutrina religiosa e política baseada nos princípios da justiça, conhecimento e integridade. Milhões de chinas o praticam. É um código de conduta social sem deuses de diabos.

   Claro que a gente só vai entender essas coisas depois de adultos. No meu tempo de menino o que predominava era a permanente luta de Deus contra o Diabo, embora era difícil para o padre explicar porque Deus, sendo o todo poderoso criou o Diabo, quando poderia ter nos poupado dele, na visão dogmática de que Deus era o bom e o Diabo era o mal.

   Era muito complicado entender essa filosofia e dogma religioso católico no meu tempo de menino e fomos criados assim, com base na cultura cristã: Deus, o bom; e o Diabo, o mal. Em parte, isso vigora até os dias atuais.