Cultura

MOURARIA: BAIRRO BERÇO DO FADO COM SEVERA ONOFRIANA E DA SÉ PRIMACIAL

Leia todas crônicas do livro de TF Lisboa como você nunca viu, wattpad
Tasso Franco , da redação em Salvador | 15/07/2020 às 07:48
Mouraria um dos bairros mais antigos de Lisboa
Foto: BJÁ
O jornalista Tasso Franco publicou a 33ª crônica em seu livro Lisboa como você nunca viu, a pensão do amor, no aplicativo wattpad. Você pode ler a crônica abaixo e todas as demais no wattpad, gratuitamente.

MOURARIA: BAIRRO BERÇO DO FADO COM SEVERA ONOFRIANA E DA SÉ PRIMACIAL

 
Lisboa tem uma terminologia própria para definir o seu zoneamento urbano. Existiam 53 freguesias que foram reduzidas para 24 a partir de 2015. A freguesia é uma zona ou área que pode abrigar vários bairros e é governada por uma junta de gestores, um poder executivo. A cidade tem um prefeito, hoje, o socialista Fernando Medina, que é o presidente da Câmara. O anterior, Antônio Luís Santos da Costa (2009/2013) é o atual primeiro ministro de Portugal. Há, também um presidente da República, Marcelo Rebelo de Souza, chefe de Estado, do PSD. No Brasil, a República é presidencialista. Não há 'premier'

O sistema é diferente do Brasil. Aqui, as cidades, têm prefeitos, eleitos pelo voto direto; e presidentes das Câmaras, vereadores eleitos pelo voto direto e escolhidos presidentes por acordo das maiorias. As Câmaras produzem leis municipais, mas o poder executivo é do prefeito. As Prefeituras de Bairros, em Salvador, se assemelham as Freguesias de Lisboa, embora não tenham a mesma autonomia que as de lá tem. 

Fiz essa introdução porque escolhi o bairro da Mouraria (Salvador também tem um bairro da Mouraria constituído originalmente por refugiados mouros da Espanha e de Portugal), entre tantos de Lisboa, para integrar este livro. 

Gostaria de colocar um bairro no contexto desta obra e achei que a Mouraria, por ser um dos bairros mais antigos da cidade, berço do fado, uma extensão da cerca moura da época da ocupação árabe, área com casario e prédios antigos, sem nada que remeta a modernidade em arquitetura, dá-nos a ideia da velha cidade, do casco antigo, dos hábitos e costumes medievais

Não que seja mais assim. Convive-se com os veículos Tesla elétricos no vai e vem das ruas do bairro ao lado dos antigos bondinhos e as novas tecnologias estão presentes nos bares, restaurantes, nas tendas de azulejaria e outros.

Mas, andar pela Mouraria é como se você estivesse andando em séculos passados e isso nos traz alegria e conforto. Assim penso. Cito um velho chavão: "Pisar na história". Ter a oportunidade de andar por ruas e frequentar locais que datam do século XII, quando o Brasil nem em sonho existia. Os sítios históricos são maravilhosos e lembram o que estudamos nas teorias dos livros do ensino de segundo grau as conquistas de Alexandre, o Grande, no Egito; as do Império Romano, no Europa; e as de Napoleão Bonaparte.

A Mouraria, hoje, faz parte da Freguesia de Santa Maria Maior, onde se situa a catedral primacial de Lisboa, a igreja de Santo Antônio, onde nasceu o taumaturgo, em 1195, com o nome de Fernando Martinho de Bulhões, e o bairro incorporou áreas das antigas freguesias (lembra, eram 53) de Socorro, São Cristóvão e São Lourenco.

Durante a ocupação árabe, em Lisboa, de 711 d.C. até 1.147 com a reconquista cristã por dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, os mouros se estabeleceram no Castelo de São Jorge, (o poder militar e governamental) e nas imediações do castelo. Para proteção o emir mandou ampliar uma muralha da época dos romanos com uma cerca que se estendia até a baixa, ou seja, próxima ao Tejo. Ficou conhecida como "Cerca Moura".

Com a reconquista, vitória do conde portucalense e depois rei Dom Afonso Henriques os mouros, que já estavam em Portugal há 700 anos, deu-se um acordo entre vencedores e vencidos. O rei permitiu que os árabes morassem nesse sitio nas imediações do Palácio de Alcáçova (Castelo de São Jorge) e partir daí, Lisboa se tornou, definitivamente, cristã até os dias atuais. Nasceu, assim, o bairro da Mouraria. 

As guerras medievais tinham um código, uma ética. No campo de batalha, a ferocidade das lutas era intensa e no corpo a corpo. Até porque as armas eram espadas, lanças, correntes, martelos, flechas e os ferimentos de quem sobrevivia eram brutais. Mas, quem sobrevivia das batalhas virava prisioneiro, depois, camponês ou citadino. Não tinha como matar a todos os derrotados. Na conquista árabe na Península ibéria pelo general Tárique Ibn Ziade que venceu o último rei do período visigótico (Rodrigo), na Batalha de Guadalete, área da atual Espanha, deu-se assim.

Coube a Abdalazize ibne Muça subjugar a Lusitânia e os nativos vendo a iminente derrota fizeram um acordo. Cessou a guerra e o emir poupou da morte os lusitanos que seguiram em suas aldeias como camponeses. Uns se converteram, com o tempo (a ocupação árabe durou 700 anos) ao cristianismo; outros; não. E foram nessas pequenas localidades que, irmanadas, começou-se a resistência a ocupação moura.

Quando Dom Afonso reconquistou Lisboa e os árabes foram expulsos da Península Ibéria, as lutas na Espanha foram maiores e mais dramáticas, porque lá estava a maior tropa do Califado de Córdoba, o rei permitiu que os mouros morassem em Lisboa. E os judeus se colocaram nas judarias da Alfama e do Carmo. Judeus e árabes não se misturavam. Até os dias atuais são assim.

Os judeus apoiaram a reconquista e depois passaram a ser coletores de impostos. Daí vem a fama dos judeus por dinheiro. As tropas de Dom Afonso tiveram apoio dos cruzados (do papa) de 6.000 ingleses, 5.000 alemães, 2.000 flamencos. Os portugueses eram 7.000. A batalha de cerco ao Castelo de São Jorge que durou de 11 de julho a 21 de outubro.

Há uma confusão enorme na cabeça das pessoas para saber o que é mouro, o que é árabe, o que significa muçulmano. Pensa-se, que é tudo uma mesma coisa. Não é. Todo mouro (hoje) é árabe; mas, nem todo árabe é mouro. Mouro é o árabe (berbere) do Norte da África - Marrocos, Mauritânia, Argélia, Saara Ocidental, que na época do general Tárique não era considerado um povo árabe e sim berbere. 

Todo mouro e todo árabe são muçulmanos? Não. Muçulmano (religião) é que aquele que pratica o islamismo e segue os ensinamentos de Maomé, do Alcorão (a bíblia dos árabes, o seu livro sagrado) que nasceu na Arábia Saudita. Há árabes cristãos, espiritas e budistas. Agora, a maioria dos árabes é muçulmano. 

 

A Península Ibérica (territórios, hoje, da Espanha e de Portugal, na época ainda não tinhas esses nomes), portanto, foram ocupadas pelos mouros e estes conseguiram converter ao longo do tempo a população nativa local, estima-se entre 50% 75% ao islamismo. Quando os cristãos reconquistaram os territórios muitos mouros se converteram ao cristianismo.

 Lisboa, por posto, hoje, nem na Mouraria, há mesquitas significativas. Já se passaram 873 anos da reconquista e a Igreja Católica foi impiedosa com judeus e árabes levando milhares deles às fogueiras na época de Inquisição, àqueles que não se converteram ao cristianismo. 

Em 1945 foi criada a Liga Árabe uma organização política que congrega as nações árabes e tem o Egito como base principal. Árabe significa claro, compreensível. E, a língua predominante árabe é a do Egito, mas, há ramificações.

O passado se foi. A história fica. O que importa, hoje, é que a Mouraria é um encanto.

A arte mudejar (mistura de mourisco e português) resultou no estilo manuelino, e os cânticos dolentes árabes, apaixonados, deram no nascimento do fado. 

Na rua do Capelão, na Mouraria, fez fama Maria Severa Onofriana, primeira fadista portuguesa. Há uma casa de shows em Lisboa, a mais destacada que se chama A Severa; e na Travessa dos Lagares cresceu Mariza dos Reis Nunes nascida em Moçambique, Maputo, filha de pai portugues e mãe africana, em 1973, que é, hoje, considerada a mais destacada fadista portuguesa, um nome internacional. Provavelmente, depois de Amália Rodrigues, a maior expressão do fado portucalense. 

E o que tem na Mouraria para se ver e curtir além dos templos religiosos e da história: bares, restaurantes, tabernas, o povo, o casario, a azulejaria, a história aos seus olhos e mãos. Ouça um fato, deguste um vinho, sinta os sabores dos quibes e esfias e diga que esteve no coração da velha Lisboa de encantos e belezas.  

Como canta a Mariza em "O Tempo não Para", fado: Cantei/Cantei a saudade/Da minha cidade/E até com vaidade/Cantei/Andei pelo mundo fora/E não via a hora/De voltar p'ra ti.