Cultura

“NENHUM HOMEM É UMA ILHA”, por Durval Pereira da França Filho

Durval Pereira da França Filho é historiador
Durval Pereira , da redação em Salvador | 18/11/2019 às 11:24
Durval Pereira da França Filho
Foto: REP

Decorridos sete anos de uma cirurgia para a remoção de um câncer de próstata, tive que submeter-me a 35 sessões de radioterapia no Centro de Radioterapia de Itabuna, da Santa Casa de Misericórdia, anexo ao Hospital Manoel Novaes, para tratar (ou prevenir) uma possível recidiva do tumor. Compreendidas no período de pouco mais dois meses (22.09 a 25.11 de 2019), essas sessões deveriam ter sido encerradas logo no início de novembro, mas circunstâncias de ordem infraestrutural fizeram com que o tratamento se prolongasse por mais alguns dias.

O Centro de Radioterapia de Itabuna é uma referência para todo o Sul, Baixo Sul e Extremo Sul da Bahia, seja pelo bom relacionamento de sua equipe multidisciplinar com os pacientes, seja pelo alto nível de competência e sociabilidade desses funcionários Nesse contexto, podemos citar: administradores, médicos, assistente social, psicólogos, recepcionistas, enfermeiros e técnicos de enfermagem e de radioterapia, e o pessoal responsável pela limpeza e higienização. São todos merecedores de nota 10, se avaliados.

A doença avilta, degrada, humilha os pacientes, mas o trabalho eficiente dos profissionais, as mensagens de encorajamento daqueles que foram curados, das psicólogas (formandas) e dos grupos religiosos (católicos e evangélicos/protestantes) que visitam o ambiente restauram a dignidade, trazem de volta a esperança e descortinam novos horizontes a esses sofredores.

Ali pude ver pacientes dos municípios: Arataca, Aurelino Leal, Barro Preto, Buerarema, Camacã, Canavieiras, Coaraci, Eunápolis, Floresta Azul, Gongogi, Ibirapitanga, Itapebi, Itamaraju, Ibirataia, Ilhéus, Itabuna, Ibicaraí, Iguaí, Ipiaú, Itagibá, Itajuípe, Jequié, Jitaúna, Maraú, Porto Seguro, Prado, Santa Cruz da Vitória, Ubaitaba, Ubatã. Cada um deles, de perto ou de longe, com sua história, com sua dor e com sua esperança, mas todos encontram atenção e apoio da parte dos profissionais.

Vieram-me à mente as palavras do sofista grego Protágoras de Abdera, que viveu no V século antes de Cristo, ao expressar a noção do relativismo, de como cada pessoa compreende a realidade de sua maneira específica: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”. Essa construção, aparentemente sem sentido, traz a ideia de que tudo deve ser definido e medido pelo homem e para o homem, através dos sentidos e da interpretação que as pessoas fazem a respeito das coisas, de acordo com suas experiências pessoais e seu conhecimento.

Embora a frase não tenha em si um conceito científico, fica evidente que as medidas das coisas são concebidas pelo homem e para o homem. Assim, o hospital, as salas, os aparelhos, o Centro de Radioterapia, tudo foi feito pelo homem e para o homem, com medidas que atendam a todos que se encontram ali. Aí também está presente uma ideia de nivelamento: todos são iguais.

Contudo, há um aspecto de ordem infraestrutural que tem incomodado os pacientes, principalmente os mais abatidos e os de mais longe: as constantes quebras do principal aparelho do centro de tratamento, o chamado acelerador linear. Muitos desses pacientes (no sentido mais amplo da palavra), cansados pela viagem, pelo desgaste emocional, pela frustração de delongar o tratamento, ficam desalentados com a dor de sua dor.

Vale aqui o esclarecimento de que, embora o problema seja de ordem técnica, em princípio, envolve muito mais uma questão de ordem político-administrativa, já que o Centro de Radioterapia de Itabuna atende a muitos municípios da região, como foi dito acima. A queda de braço entre Santa Casa de Misericórdia e governos do município de Itabuna e do Estado pouco interessa aos pacientes, especialmente aos mais carentes, aviltados pela situação social, humilhados ‘pela doença, degradados pela penúria. Todos querem apenas ser tratados.

É perceptível a alegria e a emoção estampadas no rosto daqueles que, satisfatoriamente, concluem o tratamento, tocam o sino e são aplaudidos pelos que ficam. Faz lembrar as palavras do clérigo e escritor inglês John Donne (1572-1631), em um texto intitulado Por quem os sinos dobram que, tempos depois, inspirou o escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961) a produzir romance homônimo.

“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra...; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

A prática do toque do sino é um sinal de vitória, mas o seu significado vai muito mais além, se recorremos a Protágoras de Abdera, na Grécia antiga, que relativizava a ideia de que o homem é a medida de todas as coisas, ou, muitos séculos depois, a ideia de John Donne de que todos nós fazemos parte do gênero humano e, por isso mesmo, sofremos as mesas dores, as mesmas angústias, as mesmas frustrações, mas também podemos alcançar as mesmas vitórias.