Cultura

CINEMA: SOMOS TODOS CORINGA!! Por Sérgio São Bernardo

Sérgio São Bernardo - Professor Adjunto UNEB - Campus I-Direito; Mestre em Direito Público - UNB; Doutor em Difusão do Conhecimento -DMMDC- UFBA; Presidente da Comissão de Proteção do Consumidor - OAB-BA
Sérgio São Bernardo , Salvador | 14/10/2019 às 14:23
Coringa de Joaquin Phoenix
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Coringa é um filme aparentemente simples e fácil. Complexo e difícil também. Dele podemos tirar inúmeras notas e ilações sobre produzir e evitar diversas violências, visíveis e invisíveis. Entretanto, o filme diz tudo o que centenas de livros e relatórios dizem e em pouco tempo, além de apontar saídas. Coringa é uma imagem-conceito da violência atualizada e virtualizada. 

É um filme tão linear e tão previsível que as expressões "violência gera violência", "somos produtos e produtores do meio" e o “o Estado e o capital são produtores originários da violência estrutural e institucional” parecem responder à mensagem imediata do filme. Contudo, sabemos que Todd Phillips quer mais do que falar do palhaço que ri da própria miséria e aprende a rir da miséria do outro. O aprendizado do filme é de como a violência habita o coração e a mente dos supostamente amigos e dos supostamente inimigos. 

Uma leitura semiotizada do filme sugere muitas coisas nesse Coringa humanizado e igual a todos nós. Sim, somos todos Coringa! A plástica rítmica da dor da alma plasmada no corpo do Coringa; o refazimento resiliente dos seus simplórios sonhos, como ter pai, mãe, filhos, amor, sexo, emprego e reconhecimento; a invenção trágica da vingança/justiça contra seus algozes como manifesto natural e a sublevação coletiva de um sentimento embutido em toda expectro planetário são da ordem do ser individual que se refaz em coletividades, nesse caso, em rebeliões ou revoluções. Esta criatividade e esses transtornos são do humano demasiado. As sandices e as tragédias do Coringa nos habitam e as curas são violentas.

Que a sociedade moderna é produtora de depressão, stresse, ansiedade e outros males do corpo e da mente não é novidade. A violência nos habita como gozo e delírio. Não conseguimos todos e todas acompanhar e aceitar as regras e as tecnologias de morte do Estado e do grande mercado. 

Tais regras e controles usam o texto do direito nos modalizando com as noções de tempo, lugar, pessoa, raça, sexo, família, morte, etc. Desse campo de referências tiramos respostas padronizadas aos conflitos e tensões que nos aparecem. Nem sempre todos se entendem com estes conceitos que nos inserem e nos expulsam do mundo desidealizado.

O sentimento de ancestralidade e pertencimento comunitário e a relação em perspectiva com a natureza é próprio de civilizações antigas africanas, asiáticas e americanas. Esta individualidade sintetizada é encontradiça no pensador Congolês Bunseki Fu-Kiau como o MUNTU que se constitui de humanidade sintetizada como UBUNTU que nos ensina que só existe Ubuntu porque existe uma individualidade humanizada ou uma muntualidade ubuntizada.

 Não há como cosmoconceber uma pessoa sem consciência de comunidade. Por isso, na hora de escolher e decidir, a pessoa sempre decide no interesse da comunidade. Isso faz parte da sua forma de existir no mundo. Nesse caso, tais respostas nunca são voltadas apenas para os interesses individuais. É o sentido da cura e equilíbrio de toda a comunidade e, consequentemente, o sentido do justo. 

Por isso Fu-kiau diz que quando alguém pratica um crime toda comunidade está doente e foi na comunidade que ele aprendeu tudo de bom e tudo de mau. Não há como a punição ser só para uma pessoa. Estamos todos doentes numa sociedade que vive da doença como simulacro, fragilidade e poder. Estamos todos imantados do choro do Coringa, suportando a violência e desejando responder com ela.

Os povos indígenas e os movimentos populares das Américas estão dando sinais de novas resistências contra a violência do Coringa estatal e do Coringa do grande mercado. Isso nos incita para o sorriso xamânico e exûnico em nossas carnes a chamarmos outros opostos Coringas que não querem ver seus sonhos de igual humanidade apagados. 

A palavra Kuringa tem origem no Quimbundo e diz ser algo que pode e não pode ser, tudo ou nada, podendo ser qualquer coisa. Por fim, vale amar a intensa, esquisita, paradoxal, sonhadora, incomodativa e poética composição do Coringa do Joaquim Phoenix. Em tempos de dicotomias entre cristãos católicos e protestantes, entre grupos organizados de tráfico e empresas de comunicação - com a palavra, o Batman.